Vivemos um tempo em que as obras em torno da resiliência têm vindo a ganhar grande expressão, e justifica-se. Em primeiro lugar, dado o facto social, da longevidade e multimorbilidade, sucedem-se as narrativas da luta contra o cancro, o enfrentar o Alzheimer ou o Parkinson, mais recentemente o combate sem remissão contra a ELA – Esclerose Lateral Amiotrófica, mas há muito mais no catálogo destes sofrimentos a que se podem juntar as deficiências e a épica da reabilitação; o registo de provações por raptos, alteração radical de vida depois de atentados terroristas; a perda brusca ou inusitada do modo de vida e como se faz face a novos trabalhos, à descoberta de novas competências. Como nódoa de azeite, alastram estes documentos, muitos deles são peças importantes no que hoje se designa por desenvolvimento pessoal.
“Estava morto mas não estou”, por Pedro Oliveira Leite, Contraponto, 2018, é o testemunho pessoal de alguém que não tem rebuço em contar as asperezas da infância, uma criança a trabalhar sem qualificações e que foi subindo dentro de uma empresa multinacional, até que um dia a vida lhe inverteu o destino, durante uma ação de voluntariado foi brutalmente colhido por um carro que passou um traço contínuo e projectado a quinze metros, ficou em estado crítico, politraumatizado e com três hemorragias cerebrais. Foi nesse momento que chegou a morte que nunca veio, houve a tenacidade para cumprir anos duros de recuperação, com diferentes reveses à sua volta: a condutora que nunca se deu como culpada e a empresa a quem ele dera fidelidade e admiração teve um procedimento bandalho, deixou-o à deriva. Ele tinha tudo para desistir de viver, põe a nu a sua intimidade. E nunca desistiu, como irá contar.
É uma narrativa cativante, em estilo direto, sem ademanes nem rodriguinhos. Diz quem é, o que pensa dele, fala nos seus princípios e valores, no tumulto da sua infância e na doce recordação que lhe deixou a sua avó, Maria Norberta. É explícito, não há para ali retoques: “Cresci rodeado de uma enorme confusão. Acabámos por ser oito irmãos ao todo. Quatro a viverem em Coimbra, com a minha avó materna e outros quatro a viverem no Porto, com a avó paterna. Eu convivia com os de Coimbra e ouvia falar dos do Porto. Supostamente, éramos todos filhos do mesmo pai, Fernando. Então porque vivíamos separados? Ninguém sabia. Ou ninguém dizia.”
Fala do seu ambiente da escola, da droga sempre à espreita, tornou-se o rapaz dos biscates, até entrar para uma empresa multinacional, a trabalhar num departamento de sondagens e prospeção de vendas, deu o litro, casou-se, tiveram uma filha, aderiu a causas sociais: “Aderi ao Projeto Limpar Portugal, movimento cívico que tem como objetivo promover a educação ambiental por intermédio da iniciativa de limpar a floresta portuguesa”. Conta o que se passou numa mata de prostitutas, e como elas aderiram ao esforço de remover o lixo ali existente. E em 20 de março de 2010, foi abalroado por um carro que passou um traço contínuo, transformou-se num acidentado grave. Descreve o processo clínico, tivera uma fratura exposta numa perna, tudo muito doloroso. A condutora do carro limitou-se a mandar-lhe uma carta, um belo documento hipócrita, sem qualquer referência à sua responsabilidade. O dinheiro vai escassear, tem sequelas de diferentes tipos: mal vê do olho esquerdo, severamente afetado nas funções cognitivas e até na líbido. Inicia-se a batalha judicial com a companhia de seguros, uma via-sacra de documentos e peritagens.
Por vezes é tomado pelo desânimo, precisa de apoio psicológico. Então desabafa: “Sem a indemnização da seguradora, eu tivera de avançar do meu bolso mais de trinta mil euros para as consultas de especialidade privadas, fruto do desespero pelo tempo infinito de espera no setor público. Não era do meu feitio dar-me por vencido. Pouco importava que tivesse dois terços do meu ser esfrangalhados. Precisava de voltar a sentir-me um elemento útil para a sociedade. E o primeiro passo era eu mesmo pedir dispensa da baixa médica”.
Começa o inferno do regresso ao trabalho, é uma descrição espantosa sobre o comportamento abominável da multinacional, não faltou bullying de várias maneiras, até se chegar ao acordo para saída: “Aqueles homens engravatados demonstraram-me que nunca seriam capazes de revelar uma faceta humana. Para mim, chegava. Não conseguia suportar nem mais um minuto daquela humilhação. Só queria que me deixassem em paz. Só queria salvar-me do negrume para o qual me estavam a atirar. Nem que para isso tivesse de ser roubado”.
Dá-se um processo de ressurreição, uma reviravolta no desenvolvimento pessoal: procura as raízes familiares, ajuda de irmãos, a mulher é a mais importante das âncoras, cria uma miniempresa, encontrou-se em diferentes dimensões, até na religiosa. E despede-se do leitor: “Tenho de andar devagar, embora não seja lento. Tenho de ter o meu tempo próprio para poder dizer, a quem quiser ouvir, que fui brutalmente atropelado por um carro a 80 km/h, que aterrei no chão inconsciente, que fui reanimado para ficar a saber o que me acontecera ou o que seria de mim, e durante dias, semanas, meses, anos, ninguém imaginava que iria sobreviver e voltar a ter uma vida normal. Tenho de ter tempo para mostrar que há vida depois de se ter pensado que se tinha acabado de morrer. O futuro dir-me-á se estou no bom ou no mau caminho. Mas já deixei de sofrer por antecipação. Desta experiência-limite ficou-me uma certeza para o resto da vida: posso não conseguir ultrapassar todos os obstáculos com que me deparar, mas é sempre possível contorná-los. Isto não faz de mim um super-homem. Apenas faz de mim um indivíduo que ouviu dizer que estava morto, mas afinal não estava.”
Esta é a história contada por Pedro Oliveira Leite, um caso ímpar de resiliência e de abertura à bondade humana.