Este domingo, Marcelo reconheceu que o “fracasso” da gestão da pandemia é da sua inteira responsabilidade; afirmou que ele é o responsável por aquilo que não está a correr bem. Nem o jornalista nem Mayan fizeram a pergunta óbvia: está a falar do quê, sr. Presidente? O que está a correr mal? Porquê esse ar pesaroso de quem já não acredita no “milagre português”, esse slogan marcelista que não preparou os portugueses para este desafio, sobretudo nas áreas que vão além da mera ficha covid.
Se eu estivesse naquela sala, teria perguntado se o Presidente estava a pensar nos mortos não covid, que têm sido desde março as grandes vítimas. Há dois meses que não vejo destacados os indicadores não covid do excesso de mortalidade. Seja como for, chegámos a um ponto em que as doenças não covid e não atendidas por um sistema de saúde focado em excesso na covid representavam dois terços do excesso de mortalidade. Quando vejo médicos a dizer que vão ter de escolher entre quem morre e quem vive nas salas covid, eu constato apenas que os doentes não covid têm sido escolhidos para morrer desde março.
Quando se olha para os gráficos internacionais da mortalidade desde março (covid e não covid), é difícil encontrar um país que supere Portugal na diferença entre o excesso de mortalidade total e os mortos covid, ou seja, é difícil encontrar um país com tantos mortos não covid por 100 mil habitantes. Trata-se de um fracasso monumental escondido pelo Governo e não reportado na escala merecida pelos média, sobretudo as televisões que estão há dez meses a vender o apocalipse. Sabem o que é mesmo apocalíptico? O aumento brutal do número de portugueses que está a morrer em casa de doença não covid e sem assistência médica. Para quando imagens televisivas desta miséria?
Eu sei que poucos estão interessados nestas contas, porque políticos, jornalistas, pivots e comentadores comprometeram-se em demasia com a narrativa #ficaremcasa e, agora, é difícil contabilizar os estragos. Mas é necessário fazer esta revisão da matéria, até porque não podemos voltar a cometer os erros de 2020 no futuro próximo. Quem tem cancro, problemas cardíacos ou autismo não é menos importante do que um infetado por covid, até porque cancro e problemas cardíacos matam muito acima da covid, até porque os problemas psiquiátricos não podem ser escondidos quando dá jeito.
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