Momentaneamente ausente do reality show da nossa “Sociedade do Espetáculo”, pressagiada por Guy Debord, suspendendo a cabeça na palma da mão, como se ela me fosse alavancar o pensamento, procurei pensar com a serenidade e o realismo que a matéria impõe, as toadas de ressarcimento que vão vogando, impulsionadas aqui e ali por quem procura nos factos históricos o seu leitmotiv. Sempre me ensinaram que os factos são os cadáveres dos acontecimentos, isto é, os elementos que se prestam à interpretação dos mesmos.
O importante é que, de todo em vez, percebamos o nosso rico caldo de culturas, que nos saibamos orgulhar das mestiçagens e dos mestiços que somos
Cético, questiono-me se terei por que me gabar do que os meus antepassados fizeram bem, ou arrepender-me do que fizeram mal, sabendo, de antemão, que a História se pauta por ser uma narrativa dos vencedores. Mais ou menos rigorosa, em função do cunho perspicaz do historiador, serão, em todo o caso, da sua responsabilidade, que não da minha, os confrontos interpretativos que as suas diferentes leituras do passado trazem à nossa memória.
Nos alvores da mocidade, cheguei a regressar constrangido a casa por desconhecer quem tinha escrito os Lusíadas. Angustiado, desabafei com o meu pai, por me parecer que a minha indignação roçava o pressentimento de que a professora estaria a insinuar que teria sido eu. O velhote, entrunfado, feito chefe de família, que nisso as mulheres não ousavam discutir, recatadas que se obrigavam ao androceu da casa, a que chamávamos cozinha, ficou tão abespinhado que se dirigiu à escola e, com o dedo indicador em riste, retorquiu à professora, de forma ameaçadora, que não ousasse pensar que qualquer um de nós teria sido seria capaz de tal coisa, ilibando-me perentoriamente daquele feito, o que me deixaria bem mais animado.
Eu, que não me enlevo com a fanfarronice nacionalista, que nunca pilhei, escravizei ou assassinei outros povos, que não ombreio com a eurocêntrica patologia narcisista, vou pedir perdão a quem do quê, promovendo a devolução do quê a quem? Eu, que nunca tive reflexos irracionais de tribalismo, de nacionalismo, de racismo, devo os joelhos ao perdão de quê e a quem?
Bem sei que, vendo, ouvindo e lendo, não posso ignorar que, mesmo de uma leitura a-histórica, sinto que posso e devo lutar, com esses povos, contra as injustiças atuais e atuantes que, em atos pulsionais chegam a testemunhar uma experiência humana vivida na fina película existente entre a civilização e a barbárie.
No que os Outros são produções culturais tão acidentais quanto a que subjaz ao o meu Ser, sinto que posso e devo lutar pela manutenção da riqueza das nossas diferenças, por uma reciprocidade de afetos, por iniciativas de reciprocidade cultural, económica, social e ambiental. Essa ação, esse fazer, impõem-se, não como compensação complexada por malfeitorias passadas, mas porque a vida social já nos ensinou, à saciedade, que não é na eliminação do Outro, no bárbaro derramamento de sangue que se edificam fénixes renascidas. A participação na construção de um presente e de um futuro risonhos só pode vingar se nele couberem pessoas com quem possamos lutar pelos ideais dos filhos da madrugada. Nesses ideais, têm lugar pastores protestantes, escritores negros, professores catedráticos, trabalhadores na construção civil, conservadores de direita, homens de famílias laicas convertidas ao catolicismo, ateus que não aceitam divindades, que não ofendem nem querem ser ofendidos, que acreditam no amor ao próximo e que a solução do mundo está nas próprias pessoas e evangélicos que quase no-las impõem, com as leituras literais e rasas das suas bíblias, ou os que fazem discursos de ódio contra os ateus. O importante é que, de todo em vez, percebamos o nosso rico caldo de culturas, que nos saibamos orgulhar das mestiçagens e dos mestiços que somos.
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