Com base na tese do seu doutoramento, João Ribeiro-Dibaoui escreveu um ensaio sobre o compadrio em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023. Intenta definir o significado de compadrio, por comparação com outras designações para ações de favorecimento como a cunha ou a corrupção. Centra a sua atenção nas funções públicas, se bem que reconheça que o compadrio é frequente no mundo não público; escreve algumas configurações de compadrio e procura fazer-nos compreender melhor o que potencia esta inevitabilidade de quem desempenha funções públicas ser confrontado com situações de compadrio; no termo do seu ensaio discute os efeitos resultantes destas práticas nada abonatórias na cidadania e defende medidas e comportamentos que possam contribuir para mitigar os níveis da praga.
“Em tempos passados, tornar público tal compadrio era letal para padrinho e afilhado, hoje é uma banalidade, padrinho e afilhado ficam indiferentes ao asco público“
Estamos a falar de comportamentos de ocultação, se metemos a cunha ao desenvolvermos o compadrio, podemos encontrar um alívio na consciência, mas sabemos que há algo de ilícito ou ilegítimo, em boa verdade não é assim que se constrói uma sociedade mais justa. Só que queremos um emprego ou um curso para a nossa filha, uma consulta médica rápida para o nosso filho, o sangue é mais forte. Por isso, como observa o autor, há muitos séculos que se procura que os juízes sejam completamente independentes da causa que lhes merecerá a sentença, pois há mais permissividade no compadrio em relações próximas. Como também se impõe ponderar que se metam cunhas pela demora dos serviços prestados pelo Estado, em que por vezes as exigências burocráticas são dignas de um processo kafkiano.
No compadrio, quem pede pode ser parente ou conterrâneo, pertencer à mesma organização política; ainda recentemente um investigador embrenhou-se em milhares de cartas dirigidas a Salazar, dentro de uma moldura de que o sangue, o mesmo lugar de pertença ou a filiação na União Nacional levavam à complacência do ditador, muitas dessas cartas eram depois reencaminhadas para membros do governo ou líderes políticos que informavam o inquilino S. Bento das diligências efetuadas. Tal como hoje, os pedidos de emprego tinham um peso enorme em tão vasta correspondência.
O autor não esconde que percorre estes itinerários com minas e armadilhas. Poderá estar muito bem-intencionado quando escreve “Impõe-se nutrir, com tolerância e pedagogia uma contracultura de censura do compadrio, tanto em público como em privado (e mesmo em família) – que desconstrua a tolerância que aquele (compadrio) ainda recebe nas ações individuais, sociais, políticas e económicas. Esta contracultura exige que sejamos críticos quando alguém muito próximo o faça, nos peça ou nos conte, lembrando que, por cada uma dessas ações, um português ou portuguesa, com menos acesso, terá ficado para trás, mergulhado em sentimento de injustiça.” Não sei se se trata de uma postura angelical, embora todos reconheçamos que o compadrio subverte a igualdade e que não é abonatório de um verdadeiro estado de direito.
O autor analisa diferentes dispositivos relacionais propícios ao compadrio, já falámos nas afinidades políticas, ele observa a fraternidade nas sociedades secretas, as amizades partidárias pesam imenso, ele conta a história publicada num livro de Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, envolvendo um antigo dirigente do PSD e que procura dar ares de impoluto nas suas charlas televisivas: “Luís Marques Mendes pediu-me para o receber e disse-me que a saída de Marcelo Rebelo de Sousa da liderança do partido o tinha deixado fora da lista para as Europeias, em 1999, que antes julgava ser certa, tendo já contraído algumas despesas em Bruxelas. Percebi o seu nervosismo e não tive como não o ajudar. Fi-lo presidente da EIA (a entidade instituidora e gestora da Universidade Atlântica, de que a Câmara Municipal de Oeiras era acionista maioritária) quando, em 1999, me entrou no gabinete pedindo-me o cargo.”
Em tempos passados, tornar público tal compadrio era letal para padrinho e afilhado, hoje é uma banalidade, padrinho e afilhado ficam indiferentes ao asco público. Dão-se exemplos de situações para contornar dificuldades: é o caso da utilização de moradas alheias para inscrição em escolas públicas. Quem lidera ou está no topo de uma instituição, à descarada favorece descendentes. E é referido o caso em que Jorge Braga de Macedo apoiou exposições da filha, o antigo ministro era presidente do Instituto de Investigação Científica Tropical; também é mencionada a Fundação EDP, em que Eduardo Catroga, presidente do Conselho Geral e de Supervisão, contratou uma sobrinha-neta – os exemplos abundam nos favorecimentos da descendência ou em nome da fraternidade.
O autor apresenta um manifesto pela superação do compadrio, vai anotando a multiplicidade de obstáculos que se põem à transparência e ao repúdio do favorecimento, diz mesmo que as alterações sociais e políticas não resolveram as nossas pobrezas. “Para sair deste ciclo crónico é preciso começar por reconhecer que existe uma desconexão entre o contrato social tal como este é percecionado no espaço público e a realidade da disponibilidade e da acessibilidade a bens comuns.” É assim que se instituem os canais alternativos à legitimidade, aproveita-se a proximidade para pedir a quem pode. Mostra com pertinência como as páginas de recrutamento de grandes empresas portuguesas são montadas com manhosas omissões que vão desde vagas de liderança a estágios ou candidaturas. E enfatiza também a insuficiente consciência coletiva, o que prevalece é o desenrascanço, custe o que custar.
O compadrio não é uma fatalidade, é um contorcionismo em que as pessoas encontram toda a sorte de desculpas para pedir favores. E voltamos à desconexão – sabemos que o compadrio subverte a igualdade; sabemos que a igualdade é uma das referências do que consideramos justo, mas o que tem de ser tem muita força, combater o compadrio é um dever de cidadania que cabe aos outros, é bom ver escarrapachado nos jornais ou nas reportagens televisivas ou nas redes sociais a dimensão da cunha ou dos procedimentos corruptos, a nossa consciência ri-se desses apanhados, temos coisas indispensáveis a resolver na nossa vidinha e usamos o compadrio com toda a espécie de alívios da consciência. O importante, isto para não desanimarmos um alastramento do compadrio, é saber que há sociedades onde a cidadania e o estado de direito ajuízam muito mal estes compadres que tudo fazem para se amanhar na vida.
Um interessante ensaio para ver que há oportunidades para uma cultura de transparência em latitude e longitude.
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