Excelentíssimos Senhores,
É com viva comoção patriótica que vos peço perdão pelo atrevimento na felicitação ao Condado, por mais um elevado feito histórico no campo da inovação jurídica: conseguimos finalmente provar que a lei é elástica, adaptável, e até elogiavelmente criativa.
Hoje, celebra-se o mais recente êxito da Justiça portuguesa: o da transformação de uma denúncia anónima, inconsistente e anémica, numa autêntica epopeia digna de Kafka, em parceria com a produtora televisiva Endemol. Quem precisaria de indícios quando somos um povo dotado de tanta imaginação?
Quem diria que uma denúncia anónima, inconsistente e sem indícios viria a render tanto? Três anos de novela, com direito a vigilâncias, interceções e até à devassa da vida bancária. Dir-se-ia estarmos perante uma produção hollywoodesca, conduzida por um sofisticado guionista, embora com menos glamour e mais papelada.
O enredo é exemplar: começa-se com uma carta anónima, em feitio de bilhete de namoro, ao jeito daqueles curtos, românticos e carinhosos que produzíamos quando éramos moços, e que normalmente iam parar ao caixote do lixo, mas que aqui serviram de guião para espiar um juiz, como se estivéssemos na Lisboa “ninho de espiões”, da Segunda Guerra Mundial, qual palco central de intriga e espionagem internacionais.
Durante três anos — três! — o juiz de fora terá sido estrela de um reality show de secreta vigilância, quem sabe, com câmaras escondidas no micro-ondas. Tudo sem aviso prévio, porque a surpresa é a alma do espetáculo. A maquinação é aprofundada sem que o visado saiba de coisa alguma, o que é compreensível, porque, afinal, que graça teria um espetáculo se o protagonista fosse informado de que estava em palco? Kafka teria ficado invejoso: nem Josef K. terá conseguido um enredo tão rocambolesco.
O embaraço atinge o seu clímax com a carta régia ou despacho de arquivamento, guardado a sete chaves como se fosse o Santo Graal. Duas — repito, duas! — páginas generosamente reveladas após muita insistência e birra jornalística.
Disse bem: — segundo os jornalistas, foram libertados dois módicos fólios, numa atitude magnânima do Ministério Púdico, que parece acreditar que a Magna Carta constitui um folheto promocional básico, de supermercado, com validade limitada.
Ora, se o resto é tão consistente quanto a denúncia inicial, percebe-se que mais vale manter o público na ignorância do que arriscar vaias sonoras e gritos de desaprovação da plebe.
Como a ignorância é atrevida e perante uma intriga tão audaz e industriosa dos ditos cujos, o aludido Ministério sugeriu estar a encarregar-se da ideia genial de destruir o processo, colocando, assim, a cereja no topo do bolo.
Sim, porque o “Estado de Direito” constitucional, na monarquia portuguesa, é omisso quanto aos modos de meter documentos comprometedores no triturador de papel. Imagino até que se pondere criar uma nova disciplina em Direito, intitulada “Arquivamento Criativo e Destruição Preventiva de Provas”.
Excelentíssimos, para meu lamento e desconforto com estas linhas, não é todos os dias que uma democracia consegue transformar um inquérito inexistente num Big Brother tão longevo! Se a Justiça do Condado já era conhecida pela lentidão, agora pode passar a sê-lo pela sua veia artística.
Excelentíssimos, não é todos os dias que a inovação monárquica consegue criar um novo formato televisivo do tipo “Operação Marquês – O Regresso: A Vingança do Arquivamento”, patrocinado por um Ministério Púdico.
Bem sabemos que o público não vota, mas os protagonistas também não sabem que estão a concorrer. Uma espécie de “Casa dos Segredos”, onde o maior e mais aflitivo segredo reside no facto de a própria casa (que é a nossa) estar a arder e de o fogo não ser domesticável.
Excelentíssimos, agradeço por manterem viva a nossa ancestral tradição nacional: quando a lei não servir, invente-se outra; quando a verdade incomodar, arquive-se; e quando alguém questionar, responda-se com o silêncio majestoso de quem descobriu a alquimia da impunidade.
Atenciosamente,
Deste cidadão plebeu, que começa a suspeitar que o Condado Portucalense já não é, propriamente, um Estado de Direito, mas um parque temático. Talvez mesmo um espaço generoso que oferece experiências imersivas, onde queixas anónimas, inconsistentes e anémicas ascendem à condição de material propício à exploração de todo o seu potencial de nonsense.
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