Sagres – um cabo no fim do mundo. Uma das pontas terminais daquele triângulo em que, em todos os mapas do Mundo Antigo, se afunila o extremo sudoeste da velha Europa. Esquina naval de todas as rotas de navegação marítima entre o Mediterrâneo, a Europa Atlântica e a África Ocidental. Mar – tanto mar. Que une povos, mais do que os separa.
Nesse vasto promontório triangular apontado ao Atlântico transbordam marcas milenares de humanização do território: lugares de residência sazonal, recintos e agrupamentos de menires pré-históricos, lembranças de sacralidade destas paragens – em que avulta a memória da Igreja do Corvo, o mais destacado lugar de peregrinação do mundo moçárabe.
E, na extremidade do promontório, a par do Cabo de São Vicente, o cabo de Sagres – ponto de convergência de mareantes. Por mar, que em terra, até 1443, a ponta era um ermo desabitado e mal frequentado. A partir de então, com as estadas cada vez mais prolongadas do Infante Dom Henrique no Algarve, a ponta cobra outra vida. Interessado nas riquezas naturais da região, senhor do extremo Barlavento, fruidor exclusivo, por bula papal, da navegação a sul do Bojador, o neto do Justiceiro (o da formosa Inês) e terceiro filho legítimo do rei Dom João I, instala na ponta de o uma das suas residências e promove a fortificação do lugar, cortando-lhe o acesso com uma muralha que manda fabricar ao modo ziguezaguente que, então, parecia ser o mais eficaz para a defesa dos lugares – adaptado a armas de propulsão manual mas também às mais antigas bocas de fogo.
Dono de um empório comercial que trafica com as riquezas da terra e do mar algarvios (cana de açúcar, pescarias, coral…) e com os rentáveis produtos que começam a afluir da costa ocidental africana (especiarias, gente escravizada…), o Infante estabelece-se em Sagres e escolhe este lugar para nele passar os seus últimos anos de vida, que aqui termina na noite de 13 de novembro de 1460 – faz agora exatamente 540 anos.
O tempo e os homens fizeram o resto: a memória de Dom Henrique, o homem que promovera inovadores modos de navegação e comércio por mar, que abrira a Europa a novos mundos, foi manipulada como estandarte de uma nação, como herói civil de uma época de pretéritas glórias (o outro, o herói militar, era Nun’Álvares, o santo condestável que defendera a independência do reino e a consolidara em Aljubarrota).
A manipulação da memória do príncipe mitificou o lugar. E a ponta de Sagres passou a ser olhada com o sítio fulcral de uma refundação nacional de dimensão colonial. Ou, como se dizia numa enciclopédia para jovens dos anos 60, como um «lugar que todo o homem civilizado visita com respeito». Até hoje, o regime democrático tem mostrado uma certa incapacidade para reverter o mito e suscitar uma reflexão – sem falsas modéstias nem ufanias, e alicerçada em factos historicamente comprovados – acerca do significado deste lugar de memória.
Comemore-se, pois, o Infante de Sagres, evoque-se o seu passamento há 540 anos nesse lugar consagrado. Mas como personagem que incansavelmente perseguiu a inovação, que foi precursor de um mundo globalizado, que fez de Sagres aquilo que hoje é – um lugar de convergência e convivência de muitas e variadas gentes e culturas. Se a Europa começa aqui (isso diz a distinção Marca do Património Europeu que Sagres ostenta) é na sua dimensão multicultural. E com mar – tanto mar – que continua a unir mais do que a separar os povos.
Rui Parreira – Técnico superior da Direção Regional de Cultura do Algarve
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)