Poderia ser a versão portuguesa da pedra de Roseta. Mas em vez do código Ptolemaico, há quem diga que tem gravadas a cruz de cristo e a assinatura de um marinheiro de D. Manuel.
É um emaranhado de inscrições na pedra. Muito desgastada por 500 anos ao ”sabor do vento e das marés”. E do vandalismo. Uma rocha descoberta em 1680 no rio Taunton, estado de Massachusetts. Perto da “portuguesa” cidade de New Bedford.
Durante muito tempo, estudiosos julgaram ter lido naquele painel de hierógligos o nome de Miguel Corte Real e o ano de 1511. Um algarvio de Tavira que foi à procura de seu irmão, Gaspar Corte Real, que tinha ido à Terra dos Bacalhaus e nunca mais voltou.
Esta leitura deu origem à chamada tese da pedra de Dighton que coloca os portugueses no continente americano, 20 anos antes de Colombo. Já que, por duas vezes, em 1471 e 1474, por lá tinha andado o pai deles, João Vaz Corte Real.
O primeiro estudo a apresentar a tese de que as inscrições ligavam o nome de Miguel Corte Real àquele local foi defendido em 1918 por Edmund Delabarre, professor na Brown University, nos Estados Unidos. “Eu vi clara e indubitavelmente, a data de 1511”, afirmou ele, com a mesma convicção de Champollion quando conseguiu decifrar a Pedra de Roseta.
Mas foi, contudo, o médico luso-americano, curioso da investigação histórica, Manuel Luciano da Silva, o seu mais persistente defensor para sustentar a tese de que os portugueses foram os primeiros a chegar à América.
Por aquelas águas geladas do noroeste, haviam navegado também outros nomes que fazem a lenda como Leif Erikson ou um tal Eric, o Vermelho, cuja natureza dos relatos de teor literário torna complicado definir com precisão o primeiro contacto dos europeus com o continente americano.
Por lá andou ainda Giovanni Cabotto. Deste genovês ao serviço de Henrique VII, de Inglaterra, se diz que em 1497 foi para além da Gronelândia e “descobriu terra firme a 700 léguas daqui”. No ano seguinte efectuou nova viagem mas já não voltou. E nunca se chegou a saber o local exacto por ele avistado.
Em qualquer caso – não fosse o diabo tecê-las – o reino de Portugal asseverou à coroa inglesa o nulo direito desta à colonização da área, de acordo com o estipulado no Tratado de Tordesilhas. O que era um sinal claro de que saberia da existência de terra firme para aqueles lados.
De facto, a primeira representação cartográfica da Terra Nova, e a prova efectiva de que a sua existência e localização chegaram ao conhecimento da Europa, deve-se aos portugueses. Trata-se do planisfério de Cantino, onde a ilha é perfeitamente identificável.
Acompanha-a uma legenda onde se lê: “Esta terra he decober per mandado do muy alto exçelentissimo príncipe Rey don manuell Rey de portuguall a qual descobrio Gaspar Corte Real”. A acção do navegador algarvio haveria de ser confirmada por um documento da chancelaria de D. Manuel, datado de 12 de Maio de 1501.
Tanto quanto é possível apurar, foi efectuada uma viagem em 1500, que foi detida pelos gelos árcticos, e outra saída de Lisboa em Março de 1501, com três navios. No final do Verão, Gaspar Corte Real mandou dois deles para Lisboa e continuou a sua exploração, não se sabendo mais nada do seu destino. Os que regressaram trouxeram com eles cinquenta e sete nativos e produtos locais como prova da sua descoberta.
No ano seguinte, o seu irmão Miguel partiu à sua procura mas teve igual fim. Desapareceu nos mares do noroeste Atlântico, tendo, supostamente, naufragado no local onde se encontra a pedra de Dighton. Anos mais tarde, terá gravado na rocha o seu nome e os símbolos de Portugal.
A partir de então, as viagens à Terra do Bacalhau passaram a ser frequentes. De tal forma deve ter sido intensa a presença portuguesa, que em 1504 a representação da Terra Nova, num mapa de Pedro Reinel, está cheia de topónimos portugueses. E de acordo com a recolha feita mais recentemente por Manuel Luciano da Silva, muitas dezenas de palavras adaptadas para a língua anglo-saxónica ainda hoje existem em toda a zona costeira onde a pedra foi encontrada.
Tudo havia começado uns 30 anos antes, quando João Vaz Corte Real, pai de Gaspar e de Miguel, ao serviço de D. Afonso V, integrou uma expedição dinamarquesa à Gronelândia. Em 1474 repetiu a experiência e atingiu o estuário do rio Hudson (Nova Iorque) e do rio de S. Lourenço. Por esse feito recebeu do rei o governo de parte da ilha Terceira.
João Vaz, descendia de famílas nobres, sendo filho de Vasco Anes da Costa, mais tarde Corte Real, natural de Tavira. Este, lutou ao lado do futuro D. João I e foi alcaide de Tavira e de Silves e fronteiro mor do Algarve.
Um seu irmão, Afonso Vaz da Costa, foi comendador da Ordem de Santiago e procurador de Tavira às cortes de Lisboa em 1439. O seu neto também chamado Vasco Anes – irmão de Gaspar e Miguel – foi igualmente alcaide de Tavira, bem como o seu filho, Bernardo Corte Real.
Apesar da historiografia oficial não admitir, sem contestação, o pioneirismo das navegações portuguesas – nem outras, à excepção mais provável dos Vikings – a verdade é que os Corte Reais mapearam uma larga extensão da costa leste da América do Norte. Tocaram, isso é certo, a Terra Nova e o Labrador, assinalados na história e na geografia por Terra dos Corte Reais.
E mesmo que não se reconheça a assinatura de Miguel Corte Real gravada na pedra, o seu nome e a sua epopeia ficaram para sempre imortalizados num poema do siciliano Cataldo Sículo, incluído na sua colectânea Poemata, publicada no ano de 1502:
Foge-me o talento e a eloquência,
apodera-se de mim o terror, quando tento
dizer os feitos de tão grande capitão.
É aquele que tem o nome do príncipe
celeste dos cavaleiros e a quem os
antepassados legaram o apelido de Corte Real.
Fontes: Luís Albuquerque, 1987; Manuel Luciano da Silva, 1987; Chagas, 2004; Adérito Vaz, 2000; outros.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de dezembro)