Na celebração dos 50 anos do 25 de Abril, a primeira peça teatral escrita pelo prémio nobel da literatura portuguesa, retorna aos palcos nacionais depois de, em 1979, ter sido encenada pela última vez.
Na sexta-feira passada tive o prazer de ocupar um lugar no Convento de São Francisco, em Coimbra, enquanto a peça se desenvolvia, “a ação passa-se na redação de um jornal, em Lisboa, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974. Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente”.
Viver o 25 de Abril, pelos olhos de José Saramago, torna-se uma experiência indispensável que esta peça, agora nos palcos nacionais, nos permite
A configuração do espaço da cena está ao serviço de uma analogia com o panorama social pré-revolução. Os atores protagonizam, por um lado, os servos da submissão propagandista do Estado Novo e, por outro, os revolucionários sujeitos à tensão e desconfiança comum.
O primeiro ato retrata a seleção dos artigos pelos coronéis da censura, em que é feita referência à importância do jornal no relato do levantamento militar falhado que ocorreu nas Caldas da Rainha a 16 de Março. A chefia do jornal é fascista e vive-se um ambiente de conspiração, “prevêem-se mais prisões, estou informado disso, e o nosso dever é preparar a opinião pública”.
No mesmo plano, os insurretos mudos dão-se por tristes impotentes, “Dantes, quando ainda não havia recipientes de plástico para o lixo, as donas de casa costumavam usar folhas de jornais para forrar os caixotes. Quando a carroça vinha, os almeidas deitavam o lixo para o monte, e com o lixo ia o jornal. Embora eu seja jornalista, foi sempre um espetáculo que me deu prazer. Quer que lhe diga porquê? Porque tudo aquilo era lixo.” Toca a Grândola, Vila Morena e chega o fim do primeiro ato.
O seguinte e último, posiciona-nos perante a ansiedade do questionamento do sucesso da Revolução, enquanto ela se concretiza. Ainda que no pensamento do espetador (ou do leitor) se sente a memória dos cravos, a inquietação causada pelo frágil limiar entre a censura perpétua e a liberdade conquistada força-nos a relembrá-la, como se dela já não tivéssemos certeza. “Temos feito jornais passivamente, às vezes a chorar de raiva, temos transformado a vergonha em linhas de chumbo, e temos derretido as linhas de chumbo à espera de que chegasse o dia em que fundiríamos linhas novas. Chegou esse dia. É hoje.”
Viver o 25 de Abril, pelos olhos de José Saramago, torna-se uma experiência indispensável que esta peça, agora nos palcos nacionais, nos permite.
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