Não aceito admitir que o meu problema possa dever-se a qualquer desordem mental gourmet. Hoje, acordei com o meu ADN em ruínas, mergulhado num sério transtorno obsessivo-compulsivo de limpeza. Sinto uma debilitante e angustiante vontade de limpar o meu país. Acho mesmo que isto se deve a um vírus pipi que se está a pôr de tamancos e a espalhar-se, alegremente, pela sociedade portuguesa, exigindo que lute pelo seu asseio, pureza e ausência de mácula.
Mas, com algum receio que possa ser uma doença higienista grave, fui a um psiquiatra, reservando para momentos mais audazes os apoios terapêuticos de curandeiros que se dispõem fazer uma “completa limpeza aos balneários da política”.
“Agora, que o meu requintado chauvinismo me faz sentir um doce e irónico avô facho, que já não ando de cu apertado, não escondo mais em mim um ávido desejo de limpeza de indivíduos inferiores, sujos e ou degenerados”.
Ao lado do divã de Freud, contava com a risível boa disposição daquele clínico que, numa consulta rapidinha, questionava-me: – Então, você tem medo de se contaminar ao entrar em contacto com certas pessoas? Evita concidadãos seus que possa considerar repelentes, ou sujos?
Respondi, categoricamente, que sim, com a prontidão própria de quem coopera, sem reservas, com o pronto diagnóstico que me rezaria a estranha sentença: – O senhor sofre de misofobia, um terrível medo patológico do contato com a sujeira, contaminação e germes.
Esperando com benevolente paciência que eu, puto da cara, quebrasse o silêncio, logo desatei a cogitar alto, dando vazão ao meu supremo culto de ideais de pureza e de higienismo, questionando-me como expurgar ou eliminar, de mansinho, determinados grupos de pessoas, em abono de uma completa limpeza do país.
Agora, que o meu requintado chauvinismo me faz sentir um doce e irónico avô facho, que já não ando de cu apertado, não escondo mais em mim um ávido desejo de limpeza de indivíduos inferiores, sujos e ou degenerados.
Acho mesmo que só o meu requinte patrioteiro pode ser fonte inspiradora de justificadas atrocidades a esses corruptos endêmicos da nação, entediado que estou com esta normalidade, qual versão mais aborrecida da loucura.
Lendo o meu pensamento, o médico sugeria-me que tivesse em conta “aqueles que amaram os seus semelhantes no que eles tinham de único, de insólito, de livre, de diferente, e que, por isso, foram sacrificados, torturados, espancados”, quando não liquidados sem dó nem piedade.
E continuava: – Esses semelhantes que, por serem fiéis a um pensamento, “a uma esperança, ou apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados de forma tão anónima quanto tinham vivido”, para que deles não restasse memória alguma.
Possesso com aquelas observações, habituado que estou a ser cultuado, olhei-o irado, de olhos esbugalhados, e num vigoroso salto terapêutico do divã, gritei-lhe aos ouvidos que iria abolir a porra da sua psiquiatria, a mesma que diz que se eu falo com Deus, é porque estou a rezar e, se Deus fala comigo, é porque sou esquizofrénico.
Sem pedir licença àquela saudosa cultura tatuada no meu cérebro, saí, violento, borda fora, resolutamente convencido que tenho a exterminadora e salvífica missão de fazer uma limpeza total deste país.
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