Não se trata de um manual sobre relações perigosas entre gente serôdia ou que para lá caminha, são sobretudo águas-fortes sobre o estado dos afetos na modernidade líquida, e o autor, que tem um especial talento para a chispa sardónica, assim apresenta: “Fascínios, inquietações e sobressaltos nas relações entre homens e mulheres. Como elas os veem. Como eles tantas vezes, as mais das vezes, se enganam. Os amores juvenis e os amores tardios. As tentações a pedirem transgressão e os pecados, veniais, sempre à espreita, entre olhares que se adivinham e jogos que se desvendam”. Trata-se de Epítome de Pecados e Tentações, por Mário de Carvalho, Porto Editora, 2020.
Uma notável coletânea de narrativas, um contorcionismo brilhante de solilóquios masculinos e femininos repartidos em tríptico, digamos que a peça central põe gente de idade madura a enfrentar desventuras do passado com ressaibos no presente, primeiro o doutor Augusto Reimão já postado em lar, teve amores equívocos com Vanda Sofia, esta muito resvaladiça, resta-lhe o amargor das recordações de todos aqueles encontros e desencontros num tempo de velhice em que todo o seu mundo já foi andando, a gente do seu tempo deu em morrer e o que lhe resta é alancar com aquele lastro de mágoas, não permitindo que lhe belisquem o estatuto que já teve. Hotel Azul é uma peça que durará séculos, estou absolutamente convicto, representativa do que de melhor se escreveu na literatura portuguesa deste tempo. Partindo daquele jogo clássico de histórias entremeadas ou encontros cruzados, temos encontros de raspão entre gente que vem procurar alívios numa estância termal, ou coisa aparentada, Mário de Carvalho é detentor de uma galeria de figuras ímpares no romance, conto e teatro, os parágrafos que reserva a Bártolo e a sua filha Gabriela já possuem uma dimensão incomensurável, nada há de semelhante num quadro de constrangimentos de relação pai-filha, e aqui a muita frustração entre esta gente cruzada em que o telefone nunca deixa de tocar para nos trazer os problemas que a todo o tempo urge resolver.
Está escrito em muitos canhenhos que isto de escrever com olhar posto na eroticidade, é um passeio em cima do fio da lâmina, Mário de Carvalho avém-se perfeitamente na segunda parte do tríptico, uma galeria de encontros de ocasião onde primam os jogos de cama ou no tapete. Aquela senhora lá no Luxemburgo habituara-se à rotina do seu homem, agora aparecia-lhe aquele D. João experimentalista, e ela nem sempre estava disposta a trabalhar como cobaia:
“O horror de tempo que ele demorava, festas, festinhas, mais aqui, mais além, agora o do lado direito, agora o do lado esquerdo, depois os dois, agora mais abaixo…
Não era inteiramente desagradável, mas vinha muito cheio de lances, confusões e cócegas. O meu homem do matrimónio avia esta coisa despachadamente, em força, acima, a fundo, mas este era todo de caganifâncias. Chupava, soprava, lambia, intrometia mão, nariz, dedos… Fazia-me impressão. Tive que lhe dar um par de sapatadas. Se era para entrar, que entrasse como Deus manda, usando o meio competente, eu esperava e consentia. Agora atravessamentos pianistas… Era só sentir corpos estranhos onde não deviam estar. Arredei-lhe a mão com força. E ele a dar-lhe. Nova berlaitada minha”.
Estamos em plena modernidade líquida, é o despachar e continuar, não falta mesmo um certo jogo de verdade, a lucidez de saber como está o corpo, como se lê no conto Mónica:
“Ao menos, seja sincero. Diga que o meu corpo está a enrugar, mais lasso, mais pesadão. Estas peles frouxas no despontar dos peitos, estes descaimentos no pescoço, as ramificações a aflorar os cantos da boca e dos olhos, um volume amolentado nas pernas. Ah, não? Que me conhecia das revistas do coração, eu na passerelle muito séria, uma beleza, passos certinhos. Só elegância. Muito bem. A memória também entrou. Tudo a preceito. E se ele fosse mas é gozar com o Camões?”.
Encontros ocasionais, atos repentinos que até podem ocorrer numa viagem de comboio, é numa dessas viagens, depois de uma degustação sensorial a três com moços nervosos e inexperientes que à despedida ela reflete sobre a ingenuidade dos homens que também tem o seu encanto.
No final do tríptico, a noveleta O Auditor é um apuro de tragicomédia, abre num plácido contexto de rotina laboral, chegara o novo auditor, impõe-se dar dele um quadro em sépia:
“Teria o auditor os seus sessenta e pouco anos, vestia fatos austeros, de riscas, um tanto fora de moda, e mudava de gravata todos os dias, nem sempre para melhor. Forçava-se a sorrir, mas notava-se bem que aceitara o cargo com certo enfado. Quebraram-lhe a rotina honrosa do Tribunal da Relação e o convívio com velhas amizades, para o colocarem naquele acanhado sumidouro de barafunda administrativa e problemáticas labirínticas”. Assume, no grupo, o papel de tutor espiritual e por todos assim considerado. Ficaremos a saber que é descendente de campónios, homem pequeno, vivaz, de uma correção levada ao extremo. “Conservava no seu gabinete um pequeno busto de bronze de Alexandre Herculano, que lhe servia de pesa-papéis. Ouvia sem interromper e deixava falar, sorrindo, de maneira a que o interlocutor qualificado a tentasse, por si, em qualquer excesso de discurso, até se comedir. Se a contraparte não mostrasse essa cautela e prosseguisse em congeminações, despedia-se, pura e simplesmente”.
Tudo isto se passa num Terreiro do Paço qualquer, no grupo existe Alice que vai ganhando afeto ao auditor, ela ganha coragem e atira-se ao mestre. E o inesperado acontece: magno auditor prepara-se para uma relação extraconjugal, chama à parte um dos funcionários, não era um ás no Direito Administrativo, mas via-se à légua que tinha muito expediente, pede enorme sigilo, precisava de um hotel para uma destas tardes, Martinho, era este o nome de quem podia ajudar a desenrascar a alcova, tira uma chave do bolso e entrega-lha:
“– Não precisa de hotel, senhor doutor. A chave da casa da minha irmã, que está em Paris. Fica em Algés, mesmo à mão, posso mandar fazer uma cópia.
– De certeza?
E assim se consumou aquele namoro. Os colegas estranharam o segredar entre o auditor e Martinho. Mas não tinham vontade para indagações, nem o hábito dos comentários. A felicidade dos amantes perdurou”.
Tive a dita de ler a primeira vez toda esta literatura de mestria num recanto em Manteigas, estávamos em agosto, entendi que era de pôr a aboborar uns tempos, não se trata por obra-prima um naco literário só porque nos provoca boa impressão, a despeito de se saber que Mário de Carvalho é um dos grandes escritores portugueses. Voltei à carga, parecia que estava a beber um bom Vinho do Porto, é ainda melhor do que eu pensava, seniores e gente na madura idade têm aqui uma perfeita sala de espelhos, as imagens não são sempre amáveis, muitas delas acenam a completa solidão que devasta as vidas. E nem sempre saem absolvidos neste livro de pecados.
De leitura obrigatória.
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