À semelhança de outros espaços/tempos comemorativos, como é o caso do Natal, em que o fofinho velhote das barbas substituiu o imaginário fantasista do presépio, também a Páscoa está a sofrer uma transformação radical.
Um pouco por toda a parte, as memórias judaico-cristãs da nossa cultura estão a ser substituídas por ambientes fofinhos, simplificados, controlados e seguros. Dos jardins, onde a meninada espreita amorosos coelhinhos, cenourinhas, ovinhos, florinhas, borboletinhas, casinhas do Portugal dos pequeninos, doçarias regionais, à sua desembocadura nos centros comerciais, este tempo novo configura uma significativa transformação comercial da Páscoa, envolta em contornos dotados de uma incrível reminiscência com a Walt Disney.
O que a transformação comercial opera, com a disneylização da Páscoa, não é senão o esbatimento de uma memória do seu caráter original, trocando-a, de forma sub-reptícia, por outra, em formato higienizado, liofilizado, embrulhada em papel de celofane, denotando um processo geral de transformação do imaginário pascal num fantástico conto de fadas, bem ao gosto da pequenada, num formato padronizado e reconhecido como produto da Disney, esse “triunfo da imaginação americana”.
A morte e ressurreição de Cristo (o que uma e outra significavam ou ainda significam para os cristãos) ganham foros de uma festividade universal, esvaziada de conteúdo mágico-religioso, para encarnar, nas novas catedrais do consumo tarifado, programas corrompidos por elementos esteticizados, bem simplificados, com a intenção de tornar o tempo mais agradável, facilmente compreensível e digesto.
Neste processo de homogeneização social e cultural ocultam-se referências tidas por negativas como a aludida morte de Cristo, bem como as tonalidades cromáticas associadas às vestes litúrgicas, com as suas cores sombrias, do preto, ao violeta ou roxo, simbolizadoras de dias de penitência, de sentimentos humanos de humildade e melancolia.
Os lugares físicos passam por envolver a substituição do real por uma aparência idealizada, adequada e amigável para o turista. A Páscoa Algarvia é também esse dreno usado para o fomento da atratividade do imaginário turístico e da internacionalização da cultura de massa. Um consumo híbrido que, nas suas diversas formas, associa diferentes setores, ávidos de facultarem a conjunção de um distinto e requintado prato gourmet com um simples folar tradicional.
Um consumo a que não deixará de comparecer todo um merchandising associado à milenar tradição temática do ovo, símbolo bastante antigo, anterior ao Cristianismo, em representação da fertilidade e do renascimento da vida, que lá vai fazendo o seu caminho. Muitos séculos antes do nascimento de Cristo, a troca de ovos no equinócio da primavera, era um costume que celebrava o fim do Inverno e o início daquela estação. Para obterem uma boa colheita, os agricultores enterravam ovos nas terras de cultivo.
Hoje, é na Páscoa que se desenha todo um trabalho performativo ocasional que torna o mundo empresarial e as organizações, em geral, não apenas provedores de serviços, mas também de entretenimento, oferecendo uma vasta gama de atividades temáticas de férias, com a qual prometem envolver e enriquecer as experiências das crianças durante esse período festivo, ou seja, a prestação de um serviço de linha da frente transformado numa performance. E eis que jardins, parques ou até mesmo espaços ao ar livre dos infantários são transformados em cenários mágicos para aventuras de caça aos ovos, cujos esconderijos proporcionam uma atmosfera de diversão e antecipação.
E, no que tais provedores designam de experiências como mais que uma celebração, Jean Baudrillard, no seu ensaio “Simulacros e Simulação”, ao abordar a natureza da realidade e da hiper-realidade, diria que a Disneylândia se apresenta como imaginária para nos fazer crer que o resto é real, quando na verdade toda a cidade de Los Angeles e toda a América que a cerca não são mais reais, mas da ordem do hiper-real e da simulação.
Num registo similar, dir-se-ia que o culto laico da Páscoa contemporânea é, também ele, da ordem da hiper-realidade, da simulação, uma cultura em falha que nos é imposta pela pobreza litúrgica do mercado. Talvez que o mundo real se esteja a operar na forma de acidente geográfico, ambiental, de um calvário apenas oculto pela hiper-realidade em que ele se transformou.
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