“Civilização desaparecida” é uma referência irónica que constatou o escasso relevo dado à herança cultural muçulmana na narrativa histórica sobre Portugal anterior à democracia. Plena de “eternos retornos” e “reconquistas”, é uma evidência que no século VIII as populações peninsulares e do norte de África se conheciam, eram herdeiras da romanização, a cristianização e islamização foram processos evolutivos.
A presença muçulmana na Península Ibérica, entre o séc. VIII e XV, deixou marcas materiais e imateriais profundas, também no Garb al Andalus, o actual Algarve. O desinteresse pelos “estudos árabes”, com algumas excepções, foi consequência do latinismo, do nacionalismo e reinvenções mitológicas que acompanharam a criação do Estado Nação, exacerbadas durante as ditaduras ibéricas, em Portugal (1928-1974) e em Espanha (1939-1976). Por contraposição e rivalidades foram relegadas para segundo plano as influências muçulmanas que permanecem na língua, toponímia, arquitectura, habitação, agricultura, engenharia, hidráulica, quotidiano,…
Sobreo legado cultural muçulmano, muitas vezes designado por árabe ou islâmico, importa referir que a terminologia resulta de diferentes conceitos. Árabe era a etnia dos dirigentes religiosos e militares que ocuparam o norte de África e o sul da Europa, impondo a língua e religião islâmica como elementos unificadores da colonização.
Permaneceu a cultura moçárabe, a dos cristãos habitantes da Península, bem como a cultura judaica essencialmente étnica, não expansionista, diferente do cristianismo e do Islão.
Através da investigação actual sabe-se que o relato da “invasão árabe” de 711 d.C é considerada pouco rigorosa, não só porque Tarik e o seu exército de poucos milhares de homens, eram na sua maioria berberes-amazighs, também porque a entrada na Península ocorreu a pedido de uma facção da monarquia hispano-visigoda em guerra civil.
O reduzido efectivo fez com que adoptassem uma gestão política consentânea com os novos equilíbrios económicos, sociais e religiosos, permitindo coexistências baseadas em normas negociadas. Afastando-nos da versão histórico-romântica alguém deixou escrito” …os cristãos fazem incursões no País e apoderam-se dos despojos, os árabes e o fisco levam-nos o resto…”.
Os berberes vindos para a Ibéria eram na sua maioria provenientes do “Magrebe verde”, zonas cerealíferas, de pomares de sequeiro, fruteiras e criação de gado, estabeleceram na Península as suas “alcarias”, mas também comunidades urbanas onde concentraram poderes e saberes. As elites do Al Andalus, considerado como o “primeiro renascimento”, foram vanguarda do pensamento medieval mais avançado, a medicina árabe era ensinada nas universidades europeias. Os muçulmanos dinamizavam escolas corânicas, onde as crianças aprendiam textos religiosos, língua e escrita, enquanto a Europa cristã continuava esmagadoramente analfabeta.
No século XX cresceu o interesse e a investigação sobre as civilizações mediterrânicas, abriram-se novas perspectivas para as relações milenares entre as duas margens do Mediterrâneo, mais de dois mil anos de comércios, de competições e conflitos entre os vários impérios, greco-bizantino, romano, otomano, romano-germânico,…
Com a implantação das democracias ibéricas (1974-1976) proliferaram na Península estudos e cursos de árabe, edições, literatura, investigação arqueológica e linguística, intercâmbios…
São hoje importantes referências em Portugal os trabalhos de David Lopes ainda no século XIX, Garcia Domingues (arabista, natural de Silves), Christophe Picard (“Le Portugal musulman, séc. VIII-XIII”), Borges Coelho (“Portugal na Espanha Árabe”), Cláudio Torres e Santiago Macias (Campo Arqueológico de Mértola), Teresa Gamito e Helena Catarino (arqueologia medieval), Adalberto Alves (língua e poesia árabe), entre muitos outros…
O interesse pela cultura muçulmana no Algarve foi visível nas últimas décadas com recuperação de algum património fortificado e urbano, a criação de núcleos museológicos por autarquias e acções regulares de divulgação do período muçulmano em Silves, Tavira, Loulé, Vila do Bispo, Cacela, Faro, Albufeira, do património oral e poesia, foram ainda promovidas geminações entre cidades algarvias e marroquinas. A dieta mediterrânica inscrita como PCI da Humanidade da UNESCO (2013), também com Portugal e Marrocos, permitiu aprofundar quotidianos e hábitos alimentares, constataram-se diferenças mas sobretudo enormes afinidades no estilo de vida.
A história e a herança cultural muçulmana no Algarve, a “região mais mediterrânica” do País, merece atenção, dando continuidade à investigação, preservação e divulgação.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico