É quase Natal, outra vez. Bem sei que talvez perturbe alguns leitores que encaram o Natal com reverência, sobretudo por se tratar de uma época saturada de fórmulas inspiradas em promessas de angélica fraternidade.
O certo é que, feito aquele louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu para o mercado, entro nele, stressado, e ouço o Jingle Bells até à náusea. Corro, como toda agente, de respiração ofegante, pelas ruas das lojas, tentando apanhar uma oferta a preço de saldo. Acho-me na irritação e na desilusão de sentir que qualquer atrevido chegou na minha frente. Porra! Logo agora que queria oferecer aquele presente natalício exclusivo. Contrariado, rodopio para a banca dos preparativos da mesa farta. Eles são um suculento pernil, um saboroso lombo ou um tradicional ou um apetitoso bacalhau, misturado com sonhos, farturas e pasteis, como ápice dessa farta mistura. Em casa, come-se à tripa forra, concorrendo para o modo como – segundo o saudoso Victor Rego – a nossa sociedade transformou o Natal na festa do tubo digestivo.
Natal só pode ser sinónimo de festança irrestrita de insaciáveis comilanças, a testemunharem a necessidade de um período de desenfreio e de excessos, com se o pessoal necessitasse de expandir emoções sob os cuidados de uma benévola aura mística.
Lá fora, em pleno centro da cidade, as confrarias dão nas vistas com “ações de caridade”, enchendo o bandulho a desdenhados sem abrigo, sem casa, sem teto, reconciliando a consciência com uma colherzinha de hospitalidade e uma aromática ração de Natal. Gestos salutares embebidos de um generoso espírito natalício, porque, ao que parece, não há meio de que conseguirem fazer que aquela gente se desabitue de comer, o que era o ideal.
Enquanto isso, os contos mágicos, que faziam as delícias do nosso imaginário infantil, tinham acabado, destronados pela tecnologia móvel. O mesmo destino tinha dado conta das conversas soltas, agora atafulhadas nos espasmódicos monólogos das redes sociais.
Pensei comigo mesmo: – Estás velho e nostálgico, é o que é. Transformaste o Natal num requiem, bombardeado por saturados toques de telemóveis e pelo mercado consumista de estômagos cujas dores, azias, refluxos e indigestões se atenuam com pastilhas Rennie.
Não entendes nada dos requisitos da festa dos miúdos de agora. Eles são felizes porque já não terem cicatrizes nas mãos, provindas dos brinquedos artesanais que fabricavam. Agora, oferecem-lhes tudo de mão beijada, com a vantagem de que esses joguetes são ensaiados pelas diretivas de segurança de brinquedos da EU, que definem o que constituem os requisitos de um brinquedo. E os moços pegam neles e na sua fartura, e logo os abandonam num ápice, segundos depois de lhos terem sido circunstancialmente oferecidos. Já não são surpresas vibrantes, deixadas no sapatinho pelo tisnado Pai Natal que, sacrificialmente, os oferecia, através de uma descida aventureira ao negro fumo das lareiras, capaz de contrair uma intoxicação, mesmo naquelas casas que as não possuíam.
O Pai Natal, esse velho amoroso de comprida barba alva, do tempo remoto em que os avós ainda tinham espaço um lugar físico e afetivo no espaço da família alargada, ora desaparecida como que por efeito de um “tsunami”,tinha-se higienizado, liofilizado.
Sublimara-se, acomodado nas lojas, luzes, enfeites e presentes dos shopping centers, dos jantares de empresa, do comércio em geral. Na prefiguração de estaladiças delícias, tinha virado produto acabado da secularização da nossa sociedade, um sério empecilho à existência do menino Jesus, que jazia na cama de olhos baços e fixos, à espera de uma consulta de pediatria. Não se sabe mais o que aquele aniversariante de presépios de icónicas figuras, enriquecedoras de cenas evocativas da simplicidade e da humildade do nascimento, continua a esperar dos seres humanos.
Sabe-se sim, que esse mesmo miúdo enfraqueceu e tem-se mostrado incapaz de conduzir um povo crédulo de ideais divinos, cada vez mais mascarados por uma racional armadura humana, demasiadamente humana.
O Natal, ao ter ganho uma feição eminentemente estética, das ruas cravejadas de iluminação em grande escala, às montras luzidias da crise energética, realçando a beleza de algumas artérias e edifícios, tinha-se transformado na celebração de nova religião secular de um mundo antropocêntrico, desdivinizado.
Era assim, na era da dita pós-modernidade, em que hora de criar e modelar a opinião pública se rodeava de aspetos das nossas vidas que têm menos influência que os apelos às emoções e aos estados mentais em que se assumem crenças pessoais. Persistiam as verdades poucochinhas baixas e desprezíveis, enquanto havia mentiras e fabulações altas e potentes. Melhor que nos entregarmos à vontade de nada, pois então.
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