Muito se tem falado sobre o triste estado da justiça em Portugal e sobre as possíveis causas. Há uma causa que nunca vimos referida – aquilo a que podemos chamar a autocomplacência dos tribunais.
Aproveitando o exemplo de um processo judicial que se vem arrastando pelos tribunais algarvios desde 1993, iremos ao longo destas crónicas dar exemplos daquilo a que chamamos autocomplacência e de como, num só processo judicial, podemos encontrar exemplos de violações de quase todos os direitos humanos fundamentais e de quase todos os princípios jurídicos reconhecidos. Há, até, contradição de ditados populares como o de que “A ignorância da lei não aproveita a ninguém”.
Podemos dar três exemplos correntes de autocomplacência, ou de indulgência para consigo próprio, habituais no dia a dia dos tribunais: no dever de fundamentação, na questão dos prazos (que lhes são impostos) e na interpretação do que seja a função de administrar justiça de acordo com a Constituição.
Os tribunais devem fundamentar as suas decisões?
Para os tribunais, o dever de fundamentação resulta, desde logo, da Constituição. Parece, muitas vezes, que os tribunais encaram este dever com grande ligeireza e autocomplacência, que transparece na fórmula adotada para indeferir qualquer reclamação de falta de fundamentação, repetida vezes sem conta em decisões de tribunais de todas as hierarquias: Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.
Passe o exagero, mas, se numa sentença, o indeferimento de qualquer pedido é fundamentado com a frase “Como é sabido, pedidos formulados em fase de lua nova ou quarto minguante, são para indeferir.
Se o pedido foi formulado, como é o caso, com vento levante, então a solução não poderia ser outra”, a arguição de nulidade por falta de fundamentação seria indeferida com a supra justificação – o interessado pode não concordar, mas a fundamentação está lá.
Os tribunais devem cumprir prazos?
Outro exemplo de autocomplacência dos tribunais, quando se pronunciam sobre os deveres que sobre eles impendem, é o da natureza dos prazos que lhes são impostos.
Como se pode ler num acórdão do STA[clicar AQUI], A doutrina e a jurisprudência… costumam qualificar tais prazos como meramente ordenadores, indicativos ou disciplinadores (vulgo disciplinares), porque destinados a ordenar, balizar ou regular a tramitação procedimental, e cujo incumprimento não extingue o direito de praticar os respectivos actos, apenas podendo acarretar ao agente ou oficial público infractor consequências do foro disciplinar ou outras, quiçá por violação do dever de zelo no desempenho das suas tarefas, não gerando assim qualquer ilegalidade susceptível de inquinar o acto punitivo final.
Esta ideia é veiculada por todos os tribunais. Consideremos o texto de duas normas: o art. 156º do Código de Processo Civil, sobre os atos dos magistrados, estabelece que “Na falta de disposição especial, os despachos judiciais são proferidos no prazo de 10 dias.”; O art. 569º, sobre o prazo para a contestação, prescreve que “O réu pode contestar no prazo de 30 dias a contar da citação…”.
Se o réu não contestar dentro do prazo, perde o direito de o fazer e, em muitos casos, perde a causa. Se os magistrados não cumprem os prazos, não acontece nada.
O artigo 139º do mesmo Código estabelece que, quanto às modalidades do prazo, este é dilatório ou perentório. O dilatório difere para certo momento a possibilidade de realização de um ato ou o início da contagem de um outro prazo; O decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato. Prazos meramente indicativos não vêm previstos no Código de Processo Civil. São uma invenção, conveniente, dos tribunais.
Os tribunais são soberanos, ou soberano é o Povo?
Um terceiro exemplo de autocomplacência está na forma como os tribunais interpretam a sua função de administrar justiça.
Segundo a Constituição, essa administração é feita em nome do povo e o mesmo diploma afirma que “O poder político pertence ao povo” e é exercido nos termos da Constituição.
Parece inequívoco que o Soberano é o povo, mas parece também que os tribunais tratam o Povo sem o respeito que deveria ser devido ao Soberano, como se o poder que exercem em nome desse povo fosse um poder próprio.
Além disso, não é ensinado nas faculdades de Direito que a todo o poder corresponde uma responsabilidade e que nenhum poder deve ser exercido em benefício do seu titular.
No caso dos tribunais, ao poder de administrar justiça corresponde a responsabilidade de assegurar que essa mesma justiça seja feita, para benefício precisamente do Povo.
Como não é o “Povo” que recorre aos tribunais, ou que nele comparece como testemunha, mas sim indivíduos singulares, partes desse Povo, esses indivíduos são tratados sem grande consideração pela sua iminente dignidade e, muito menos, como os verdadeiros soberanos numa democracia.
Isoladamente são fracos, não têm poder, o que justifica a frase tantas vezes ouvidas de que “os tribunais são fortes com os fracos e fracos com os fortes”.
SANTO IVO
Nasceu em Bretanha, região administrativa do oeste da França, em 1253.
Ivo recebeu uma ótima formação, formando-se em Filosofia, Teologia, Direito Eclesiástico e Civil. Um santo advogado, juiz e sacerdote.
Faleceu com apenas 49 anos, mas deixou um testemunho muito forte, reconhecido como o “advogado dos pobres”, empenhado na busca da verdade, da misericórdia, da justiça e do amor. Foi canonizado em 1347 pelo Papa Clemente VI.
O santo Ivo diz à família forense e a todos, em geral, que viver o amor e a justiça é possível.