Perante a necessidade de tarefas a cumprir com o rigor e lucidez que devem imperar na escrita científica, o lado esquerdo do meu cérebro começa a ceder ao direito, e este vai-se sobrepondo, enquanto as palavras me vão aparecendo não sei bem como nem porquê. Talvez tenha sido o telefonema de um jovem aluno, quase mestre, a questionar-me sobre os consumos de água à escala global, para os diversos usos… entre as várias sugestões vi-me a sair de um quadro estatístico e a perder-me nesta crónica.
Na última vez que falei em público sobre a água no Algarve, a convite de uma conceituada ONG local, a Almargem, defendi que com a tecnologia e a ciência disponíveis, se formos cidadãos conscientes e exigirmos políticas eficazes, apesar dos frequentes episódios de seca, não teremos necessidade de enfrentar a escassez de água… porque vivemos no século XXI!
Tal como na generalidade das regiões do planeta, a agricultura representa no Algarve o maior consumidor de água, cerca de 57 %, seguindo-se os usos urbanos (29 %), os do turismo (11 %), e finalmente a indústria, que juntamente com outros pequenos usos representam 3 %. Na insegurança destes dias de pandemia, em que a vida urbana nos é mais favorável em realidades onde a Natureza nos defenda e nos limpe o ar que respirámos, a água volta a assumir uma especial importância. As cidades de hoje concentram infraestruturas, edifícios e serviços, para 55 % dos cidadãos do planeta, que são responsáveis por 80 % do PIB e pela emissão de 70 % do CO2. Nesta lógica de vivência urbana, os consumos hídricos dividem-se em partes aproximadamente iguais, entre os usos domésticos e os usos em espaços exteriores. As infraestruturas verdes são áreas naturalizadas que precisam de ser regadas, os espaços exteriores e as viaturas públicas e privadas carecem de lavagens periódicas, as bocas de incêndio distribuídas pela cidade têm que ser abastecidas… estes usos não potáveis, entre outros, podem ser supridos por água que a própria cidade liberta, desde que devidamente tratada em ETARS urbanas, quase sempre bastante próximas.
Neste momento em que a palavra-chave é emergência, climática e pandémica, os episódios de seca devem ser enfrentados tirando-se partido da tecnologia, evitando mais riscos, ambientais ou de saúde pública. É fundamental que a inovação tecnológica aplicada ao tratamento dos efluentes urbanos, saia das bancadas laboratoriais das academias e passe à escala real, à semelhança do que ocorre noutras urbes por este mundo fora, e que seja posta ao serviço da sociedade. O desafio não é simples, e é um entre vários no domínio da gestão sustentável do ciclo urbano da água.
Os efluentes urbanos têm hoje substâncias químicas complexas e muito diversas, umas já caracterizadas, outras ainda em estudo e consideradas de preocupação emergente. Até porque a indústria vai sempre produzindo novos produtos, à procura de conforto, saúde e bem-estar. Todos os dias, cada um de nós, mesmo sem sair de casa, liberta a partir do que ingere (alimentos e medicamentos) ou do que usa na sua higiene e cuidados corporais (produtos de higiene, cosméticos, etc.), uma ampla gama de substâncias que chegam às ETARS, e que por vezes, não são totalmente tratadas. Nos últimos tempos têm-se vislumbrado sinais de esperança no espaço Europeu e ouvem-se decisores políticos a falar de grandes incentivos à reutilização de água urbana. Neste cenário, vários países, Portugal incluído, têm vindo a desenvolver legislação para garantir que os efluentes urbanos são devidamente tratados. Que são feitos estudos de análise de risco em cada ETAR, que garantam a eficácia dos processos de tratamento e a qualidade da água para reutilização, ajustando-a ao uso que se lhe pretende dar. As atuais ETARS urbanas, devem ser assim encaradas como um importante elemento de circularidade, funcionando como origens alternativas de água, sobretudo para usos não potáveis, urbanos e outros. Próximas dos locais onde essa água é necessária, permitem menores consumos energéticos associados ao seu transporte, contribuindo para a redução do custo da água e das emissões de carbono a ela associadas. Haverá situações em que, a qualidade do efluente tratado se ajustará à reutilização para rega agrícola. Sobretudo, em certas culturas como nos citrinos, em que com riscos controlados, se poderá diminuir a extração de água natural para rega, sobretudo de origem subterrânea, e particularmente em zonas costeiras ameaçadas pela intrusão salina. As águas tratadas para reutilização têm normalmente concentrações de azoto mais elevadas do que as águas naturais, pelo que, não as descarregando no meio envolvente, estaremos a evitar possíveis fenómenos de eutrofização e a proteger o equilíbrio dos ecossistemas. Por outro lado, reutilizando-as na rega agrícola, vamos reduzir as necessidades de aplicação de fertilizantes de síntese azotados, diminuindo os custos de produção e a pegada de carbono dos alimentos cultivados. Nada de novo à escala global, mas ainda um grande desafio para a região.
Os humanos são produto de um longo percurso evolutivo da Natureza, mas não haverá espécie mais anti natura… constrói e destrói, vive mal em equilíbrio e vive em equilíbrios maus. Com a certeza de que não viverá sem a sua Natureza, a sua diferenciação tecnológica permite-lhe atuar com impactes de intensidade e precisão, mortíferas ou salvadoras, consoante o que lhe for na alma… e nas nossas crenças religiosas, até a alma a água nos lava!
Que a água não escasseie, porque a vida não se suporta sem ela… neste caso não haverá máscara que nos mantenha vivos!
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