Confinados, demos valor ao que antes parecia ser “vulgar”, passámos mais tempo em família, com quem partilhámos novas tecnologias, mas com quem também construímos momentos de… histórias e memórias. O património imaterial de cada família, uma herança intangível que deixamos para o futuro, para os que nos sucedem.
Mas será que também damos mais valor ao que está perto de nós?
Será que valorizamos as memórias do século XX, casas e indústrias do século passado de que ainda, os mais velhos, têm memória, mas que quisemos apagar com novos modelos e novos olhares? O passado era “piroso”, antigo e pobre, hoje chamamos-lhe kitsche passou a estar na moda. Lembremo-nos do Galo de Barcelos, das loiças de Bordalo Pinheiro, do Santo António: alguém os redesenhou e ficaram na moda.
Vamos então colocar na moda os objectos kitsch algarvios, recriar a forma como olhamos para eles, dar-lhes valor e, ao dar valor, não perderemos os saberes dos antigos, pois os novos vão querer fazer com a mesma sabedoria.
Recordemos alguns destes objectos, tomando os recursos do nosso solo como elo de ligação:
– o mosaico hidráulico, se a raiz não é algarvia, o seu uso era habitual nas casas dos algarvios. Para muitos é algo que traz memórias de pobreza, pavimento vulgar das casas dos avós onde por vezes o dinheiro não abundava, materiais que os novos não quiseram voltar a usar, substituindo-os por pavimentos cerâmicos, muitas vezes imitando o que não se conseguia adquirir, mármores e afins. Hoje temos no Algarve um último artesão, que, na sua muita idade, tem energia e saber que quer partilhar, mas não faz escola, ninguém para aprender, ninguém para trabalhar em continuidade; existe procura, mas não existe resposta;
– a tijoleira e as telhas, trabalho manual e duro, diversidade nos moldes e pronta resposta aos desafios de quem os procura. Mas também aí não encontramos muita continuidade: das inúmeras olarias/telheiros que existiam, hoje resta uma meia dúzia a funcionar, alguns já não o fazem a tempo inteiro;
– as peças de barro das olarias, dizem-nos os artesãos que antes era fácil o acesso à argila dos terrenos em redor, dos campos dos vizinhos, mas isso hoje tornou-se-lhes complicado, pois questões burocráticas impedem a venda simples e fácil entre dois vizinhos. Mas o artesão algarvio não viu problema e arranjou solução, e ainda encontramos no Algarve alguns oleiros que trabalham o barro, com as técnicas tradicionais, fazem pintura manual, e ainda se encontra quem use os fornos de lenha para a sua cozedura (não sendo vulgar, ainda o fazem). Mas a verdade é que já não são muitos que do barro chegam à peça que levamos para casa, decorativa ou funcional, mas a procura existe.
Muitos outros objectos e os saber-fazer a eles associados poderíamos aqui referir, mas cabe a cada um a salvaguarda das nossas memórias, dos nossos objectos tradicionais, valorizar o que está perto e espalhar esta informação pelos que nos visitam, quer presencialmente quer digitalmente, darmos a conhecer o que nos identifica e que nos faz únicos na diversidade deste mundo global.
Em tempos em que a demanda por casas tradicionais algarvias tem crescido, a reabilitação das mesmas e o aparecimento de novos interlocutores que valorizam o tradicional, tem levado a um aumento de procura e de mercado destes materiais, mas a resposta não consegue acompanhar a procura. Façamos dos nossos objectos e dos nossos artesãos estrelas lá fora: compre cá dentro, divulgue para fora.
Atenta ao mérito de se fazerem registos deste património imaterial, materializado de tantas formas, a DRCAlg promove a sua salvaguarda, estudo e valorização, incentivando a sua divulgação: seja nosso parceiro.
Cristina Fé Santos
(Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve)