Vítimas e ex-discípulos portugueses do guru belga Robert Spatz apontam o dedo aos dirigentes e à comunidade budista por nada terem feito em relação às suspeitas de abuso físico e sexual sobre menores cometidos pelo guru num mosteiro no Algarve.
Ao Expresso Ricardo Mendes, líder da OKC Info — associação de vítimas do belga que liderou o grupo de inspiração tibetana Ogyen Kunzang Chöling (OKC) naquele país, em França, Espanha e Portugal, e que foi condenado em 2020 por um tribunal de Bruxelas a cinco anos de prisão com pena suspensa revela que “desde 1997 que toda a gente do mundo budista tinha conhecimento das suspeitas que recaíam sobre Spatz, depois da sua prisão na Bélgica e das buscas da PJ no Algarve. E, nos anos seguintes, as vítimas foram revelando pormenores sobre alguns dos seus crimes hediondos. É impossível que a União Budista Portuguesa (UBP) nada soubesse. Mas nunca fizeram nada para apurar a verdade, nem sequer falaram com as vítimas ou abriram qualquer investigação interna. Deles só tivemos o silêncio”.
À mesma fonte, Madalena (nome fictício), de 70 anos, uma das suas ex-discípulas mais antigas revela que “para todos nós, Spatz era quase divino. Trabalhávamos horas a fio sem receber nada, apenas pela fé. Mas fui percebendo como nos manipulava, aos adultos e às crianças. Da rigidez excessiva passou aos abusos físicos, psicológicos e sexuais. Como uma seita.”
Madalena continua “fui percebendo como nos manipulava. Da rigidez excessiva passou aos abusos físicos e sexuais”. Dois dos filhos de Madalena foram alvo de punições horrorosas do “venerável lama Kunzang Dorje”, como gostava que lhe chamassem. “Foram obrigados a caminhar no gelo, ficaram fechados em quartos escuros com ratos, levavam com paus nas pernas.”
A mulher conseguiu fugir com os filhos mas vive com o remorso de ter submetido as crianças àquelas “sessões de tortura”. O mais velho conseguiu recuperar, no entanto, o mais novo “ficou desconstruído e dificilmente será recuperável”. Atualmente ainda é budista, mas não perdoa os seus principais responsáveis em Portugal por terem ocultado estes crimes.
“Estas vítimas deviam ter apoio psicológico, serem indemnizadas pelo Estado português e receberem pelo menos uma palavra de afeto da União Budista Portuguesa”, refere.
Um dos fundadores da OKC em Portugal, que pediu ao Expresso para não ser identificado, e um dos homens mais próximos de Robert Spatz confessou que nunca quis acreditar na versão das vítimas.
Só em 2009 é que começou a acreditar, quando a própria filha lhe revelou que tinha sido abusada sexualmente pelo belga quando era ainda menor de idade. O abuso terá ocorrido no final dos anos 90. Robert Spatz tinha-a levado para o seu retiro situado a dois quilómetros do mosteiro na serra algarvia, onde era obrigada a masturbá-lo. “O ascendente de Spatz sobre nós era tão grande que a minha filha temeu que eu não acreditasse nela.”
Hoje, diz-se arrependido de ter ajudado a construir um grupo religioso liderado por um pedófilo. Defende-se no entanto revelando que “para nós era absolutamente inimaginável que houvesse alguma verdade nisso. Todo o nosso mundo girava à volta de Spatz.”
UBP garante que “não tem conhecimento de abusos físicos e sexuais na comunidade budista”

O belga viajava com frequência para o templo algarvio onde no final dos anos 90 tinha transferido 25 crianças de outro local deste culto budista situado nos Alpes franceses. E onde ficaram isoladas do resto do mundo. Entre elas encontrava-se Isabel (nome fictício) que viajou para o Algarve aos 12 anos. “Éramos pendurados pelos pulsos e amarravam a corda a um cabo para nos mantermos acordados nas orações.”
As festas em que o consumo de álcool era mais que excessivo eram constantes. “Eles chegavam a passear as crianças em coma alcoólico em tratores.” E durante um ano, tal como outras raparigas do mosteiro, foi obrigada a masturbar o ‘mestre’ que lhe dizia que aquela era a cura para as suas constantes enxaquecas.
“Agora sou mãe, adotei uma criança e estou muito bem resolvida, ao contrário da maioria das vítimas.” refere Isabel. Nas buscas da PJ ao templo algarvio, em 1997, foram encontrados filmes pornográficos. Um ex-inspetor que participou naquela operação suspeita que os membros da OKC foram alertados antes da chegada da polícia. “Não havia quase provas nenhumas. E só lá restavam umas poucas crianças. Tinha sido tudo limpo”, defendeu.
O MP acabou por arquivar tudo e não houve arguidos. Paulo Borges, presidente da União Budista Portuguesa entre 2002 e 2014, garante que nunca recebeu qualquer denúncia de abusos “só tomei contacto com essa questão por via de notícias na internet, entre 2012 e 2013, acerca do processo e julgamento em curso na Bélgica. Isso coincidiu com a cessação das minhas funções na UBP.”
A UBP refere que “não tem conhecimento de abusos físicos e sexuais que tenham ocorrido na comunidade budista em Portugal até à data”. Já a OKC em Portugal “foi excluída da UBP em 2015, da qual não temos mais informação”.
De relembrar que Robert Spatz fundou a OKC, grupo de inspiração tibetana, em 1972. Construiu templos naquele país, nos Alpes franceses, em Espanha e na serra algarvia.
No final dos anos 90, os jovens que viviam no mosteiro Humkara Dzong eram visitados por Spatz. Spatz foi investigado a partir de 1997 em Bruxelas, Paris, Madrid e em Lisboa. Foi detido duas vezes em França por factos ocorridos nos anos 70 e 80. Saiu em liberdade.
Em 2015, Ricardo Mendes reuniu ex-discípulos de Spatz de várias nacionalidades, que denunciaram os abusos.
Em 2016 foi condenado em Bruxelas a uma pena suspensa de quatro anos de prisão por abuso sexual, sequestro de menores e branqueamento. Em 2020, o tribunal de apelação de Liège condenou-o a cinco anos de prisão, com pena suspensa, por alguns destes crimes.
Por fim, em 2021, o MP francês abriu uma investigação a um educador da OKC, depois de receber oito queixas de vítimas.