À medida que envelheço sinto que a noção de espaço e tempo vai-se alterando. Quando era mais novo Lisboa era muito perto de Faro porque, segundo o mapa, era só um dedo de distância, mas já era uma eternidade ter de esperar para ir à água depois de comer. Agora com 30 anos, ir ao supermercado ao fundo da rua é uma enorme distância mas nunca consigo perceber como é possível deitar-me em janeiro e quando acordo já ser dezembro. É assim que sinto-me quando apercebo-me de que já fez um ano sobre o início da agressão militar entre a Federação Russa e a República da Ucrânia originando um conflito armado que mudou para sempre a vida de milhões de cidadãos inocentes.
Lembro-me de acordar no dia 24 de fevereiro de 2022 com a notícia do início do conflito e haver no ar um misto de calma e apreensão aqui na Polónia. Calma porque não houve nenhum pânico nas ruas, nenhuma corrida aos supermercados, aos postos de combustíveis, às farmácias, etc (isso aconteceu somente mais tarde). Apreensão porque aqui na Polónia a comunidade ucraniana é muito grande e todos nós conhecemos alguém com família nos territórios afetados, para não falar da incerteza de que este seria um conflito centrado somente no território da República da Ucrânia ou se iria escalar para uma terceira guerra mundial. As dúvidas eram muitas mas uma coisa eu sabia, se o conflito escalasse a cidade onde me encontrava era um alvo a ser atacado porque tem uma base aérea militar onde estão estacionadas algumas forças provenientes de países aliados da OTAN (NATO). Todas as noites a minha namorada agarrava-se a mim com imensa força cada vez que se ouvia um avião a sobrevoar os céus da cidade onde vivemos.
Tinha a perfeita noção de que vivo a mais de trezentos quilómetros da fronteira ucraniana e bielorrussa mas cada vez que ouvia um avião e ela se agarrava a mim eu apenas dizia que estava tudo bem e que nada iria acontecer, mas ao mesmo tempo eu esperava ouvir o estrondo do primeiro explosivo. Foram várias noites a dormir com alguns sobressaltos mas eu nem adivinhava que passado uma semana estaria sem dormir com o meu telemóvel constantemente a tocar de madrugada com famílias ucranianas em Portugal a solicitarem por ajuda para eu encontrar familiares ou ajudar os mesmos a chegarem a Portugal e por cidadãos ucranianos que encontraram o meu número por grupos de ajuda (que até hoje nem sei como ele foi lá parar) e a pedirem para eu os tirar da Ucrânia. Foram várias noites que tive de pedir ajuda à minha namorada, de nacionalidade polaca, para que tentasse perceber quem eram estas pessoas e como as podíamos ajudar. Foram várias as noites a organizar documentos e a fazer uma triagem das pessoas antes de enviar os mesmos para as autoridades portuguesas de forma a que os cidadãos ucranianos fossem devidamente protegidos, e legalizados, para Portugal. Foram vários os dias que o receio tomava conta de nós com as imagens do conflito nas televisões, os roda-pés vermelhos com noticias de última hora, as estações de comboios cheias de pessoas sem ter por onde ir o sentimento de impotência, o acordar após sonhar com uma bomba a cair e o dificil controlo das emoções ao saber de notícias que nem me atrevo em partilhar por este meio.
De toda esta situação, surgiu o orgulho de ser português na Polónia e descobrir que a comunidade portuguesa é mais uma família que se uniu numa causa e não deixou ninguém para trás. Os portugueses saltaram a fronteira ucraniana para resgatar ucranianos com nacionalidade portuguesa, acolheram famílias e crianças nas suas próprias casas, pagou hotéis com o seu próprio dinheiro, organizou e entregou donativos, coordenou autocarros e arranjou voos para centenas de pedidos de ajuda e sempre que era solicitado estavam em contacto com a comunicação social para que, de uma forma calma e séria, informassem os portugueses do que era ou não necessário. Sem essa comunidade, e sem a enorme ajuda de alguns portugueses em Portugal, não teria sido possível proteger, de forma legal e coordenada, tantas pessoas.
Hoje, passado um ano do conflito, confesso que continuo a ter receio do dia a dia e não devido ao conflito em causa mas sim ao processo de paz.
Durante este ano temos assistido a um escalar das acusações de diversos líderes políticos para com a Federação Russa sem a possibilidade de diálogo e procura de uma solução para o conflito em causa. Seja qual for o resultado final deste conflito a União Europeia irá ter um território propenso a ultra-nacionalistas e com uma enorme instabilidade pois se a Federação Russa vencer o conflito, todo o esforço que a União Europeia e países aliados da NATO fizeram foi em vão criando uma insatisfação popular que poderá levar à queda de alguns governos devido ao aumento do custo de vida, à dificuldade de acesso a fontes de energia bem como ao facto de a União Europeia ter desprezado a diversificação da sua política externa com o continente africano e sul americano, sem contar que o sentimento de vitória da Federação Russa irá fazer uma enorme pressão sobre os países da NATO. Por outro lado, se houver uma vitória das forças ucranianas o sentimento de ultra-nacionalismo poderá levar os mesmos a realizarem uma enorme opressão para com as minorias russas que vivem no território ucrâniano como, segundo relatórios da ONU, já aconteceu no passado.
Nenhum de nós pode saber como vai ser o futuro mas podemos prever que os cenários, mesmo os de paz, não são animadores e necessitam que os líderes políticos se foquem mais num caminho de paz do que num caminho de selfies com Zelenski.
Em suma, caro leitor, o conflito existente neste momento abrange uma diversa área de interesses que resulta em vários problemas angulares que são discutidos em mesas redondas e decididos por bestas quadradas. Como indica o título deste artigo, um mero problema de geometria.
* Licenciado em Planeamento e Gestão do Território pela Universidade de Lisboa. Trabalha em Cash Collection na Polónia
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