“Qualquer obra de arte é a aplicação de um esforço de interromper uma corrente, de fazer saltar, estilhaçar, uma ligação, um vínculo, em vista de os exprimir.” (Maria Filomena Molder)
Comemorações do dia da Europa. Estávamos em Maio. Leio, no jornal Público, um artigo sobre os valores europeus. Tecer uma ideia de Europa utilizando fios que representariam os valores europeus – a paz, a liberdade, a diversidade, o direito e a solidariedade – seria a proposta do historiador Timothy Garton Ash.
Eudóxia, uma das cidades que Italo Calvino descreve no seu livro As Cidades Invisíveis, assume a forma de um tapete: ‘à primeira vista nada é tão pouco parecido a Eudóxia quanto o desenho do tapete’, mas observando com mais atenção, repara-se que cada ponto do tapete corresponde a um ponto da cidade, podendo cada habitante comparar a ordem imóvel do tapete a uma imagem da cidade que é a sua, e assim, escondidas entre os arabescos do tapete, estariam as histórias das suas vidas e as vicissitudes do destino.
A promoção da participação dos cidadãos de forma a tecerem um futuro europeu comum é um dos desafios das instituições europeias. A democracia pressupõe um plural, o exercício do dissenso, para além dos consensos, o que implica um esforço de compreensão, de negociação, de comprometimento, necessário quando vivemos no seio da diferença e da alteridade. ‘O múltiplo, há que fazê-lo’ relembram-nos Gilles Deleuze e Félix Guattari, a propósito do conceito de rizoma, um conceito não hierárquico, antes um sistema horizontal que os dois filósofos propõem em oposição à ideia de raiz (o modelo da árvore tem estado presente em todo o pensamento ocidental, da biologia à filosofia). A filósofa Hannah Arendt fala-nos do conceito de pluralidade como fundamental para a condição humana: ‘porque o mundo não é humano por isso mesmo; o mundo só é humano quando o convertemos em objecto de discurso.’ É através da acção e do discurso que construímos um sentido comum.
Mas há palavras que estão gastas como as de comum, paz, liberdade, diversidade, solidariedade. Jorge Louraço Figueira escreve: ‘Hoje, num mundo de palavras-tecladas, palavras gravadas, palavras copiadas, palavras digitais e electrónicas, quem estabelece a cotação de cada palavra?’ Será preciso então voltar a enunciar as palavras para desfazer e refazer o mundo.
Mas que comum temos vindo a construir com os outros seres? O que pensar da ideia de
sustentabilidade e do impacto da presença humana no planeta no âmbito da chamada crise energética actual? Vários discursos alertam há muito para a perda da biodiversidade, para uma nova extinção em massa potenciada pela acção humana. A ideia de natureza no singular, como algo exterior ao ser humano, fora da condição humana, que está ali para ser usada ou para ser ‘descoberta’ estará a ser reequacionada? De que natureza falamos?
Em 1969, a viagem à Lua trouxe para as salas de estar de todo o mundo, através da televisão, a imagem da Terra vista do espaço. Mais ou menos na mesma altura, James Lovelook, formulou a Hipótese de Gaia, mais tarde reequacionada como a Teoria de Gaia, na qual a Terra funciona como um organismo que se auto-regula. Recorrendo à biologia e à química ele tentou compreender o equilíbrio que permite a vida no planeta e como este reage de forma encadeada. Passadas várias décadas, já no século XXI, Bruno Latour voltou a reflectir sobre os mil nomes de Gaia e sobre a necessidade da criação de uma nova imagem da Terra, a ser criada em conjunto pelas ciências e pelas artes, que nos possa re-ligar à Terra.
Ecologia e Economia têm uma raiz comum – Oikos, que se refere à casa, ao cuidar da casa. Será preciso pensar o planeta como uma casa para nos subtrairmos à lógica da posse e do extrativismo.
Em 1987, o Acto Único Europeu introduziu a base jurídica da política ambiental. Em 2001, a União Europeia apresentou a primeira Estratégia de Desenvolvimento Sustentável. Mas a disparidade na aplicação da legislação ambiental europeia é grande no seio dos Estados membros, apesar da previsão de que estes Estados adoptem sanções, a nível nacional, para a emissão ou descarga ilegais de substâncias na atmosfera, na água ou nos solos; o comércio ilegal de espécies selvagens; o comércio ilegal de substâncias que empobrecem a camada de ozono e a transferência ou descarga ilegais de resíduos, enumerando só alguns exemplos.
No Relatório do Estado do Ambiente de 2020, a Agência Europeia do Ambiente alerta para o facto da Europa continuar a perder biodiversidade. E a perda acontece a um ritmo muito acelerado: 60% das espécies e 77% dos habitats estão ameaçados apesar de estarem protegidos pela Directiva Habitats da UE.
Como tem sido pensada a relação do ser humano com o que o rodeia pelos artistas em Portugal? Que relação homem-natureza podemos antever nas suas criações?
Poderá a arte ainda ser um ‘lugar’ de abertura e possibilidade?
Vera Mantero apresenta a peça O Limpo e o Sujo em Portugal. Estamos em2016. Fala-nos no
papel da arte: ‘Estas artes [performativas] e o trabalho para a Transição são aparentados. Práticas de cuidado de si, práticas de cuidado de nós. Práticas específicas para reinventar maneiras de ser. Ferramentas de trabalho sobre nós, ferramentas de equilíbrios vários, de ecologias várias, pessoais e sociais. Gosto de pensar na arte enquanto Ferramenta de Transição (…). Há um lugar significativo para o corpo nestas questões (…) é o lugar que providencia a activação dos sentidos e do pensamento, e que intensifica as relações com tudo o que está à nossa volta. Tudo isto tem a ver com energia, movimento, intensidade e desejo, e isso é o que cria sentido na vida.”, declara Vera Mantero.
As Três Ecologias do filósofo francês Félix Guattari, ensaio escrito em 1989, foi uma das leituras subjacentes à criação da peça. São três as dimensões ecológicas indicadas por Guattari: a ambiental, a social e a mental, todas elas interligadas e exercendo influências mútuas. Comecemos então por uma ecologia da mente. Não será por acaso que nesta peça de Vera Mantero os corpos dos bailarinos movimentam-se incessantemente, em dissonância com o som, fazendo uma espécie de ‘tricots internos’, citando as palavras desta coreógrafa e bailarina, no Manuseamento dos Materiais do Mundo. Propõe: ‘‘Manusear espaços, tempos, afectos, desejos, vibrações.(…). Limparmo-nos nesse manuseio. Sujarmo-nos nesse manuseio. Manuseio em associações várias, em intersecções e acoplagens, manuseio activado em acções, corporizações, encarnações (atravessadas em espaços e tempos).’
Na redacção deste artigo adoptou-se a ortografia anterior ao ‘Acordo Ortográfico’ de 1990.
ARENDT, Hannah, A Condição Humana. Relógio D’Água: Lisboa, 2001
BAUMAN, Zygmunt, Amor Líquido – sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Relógio D’Água: Lisboa, 2006
CALVINO, Italo, As Cidades Invisíveis. Dom Quixote: Alfragide, 2015
DEMOS, T. J., Decolonizing Nature. Contemporary Art and the Politics of Ecology. Sternberg Press: London, 2016
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Rizoma, Documenta, 2016
HILLS, Andrea Casals e CHIUMINATTO, Futuro Esplendor. Ecocrítica desde Chile. Orjikh: Santiago do Chile, 2019
MOLDER, Maria Filomena, Rebuçados Venezianos. Relógio D’Água: Lisboa, 2016
https://www.eea.europa.eu/pt/highlights/o-estado-do-ambiente-na
http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/165-SARAH-SZE-PARIS_GB.pdf
http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/168-INTRO-CATALOG-semi-final-pdf.pdf https://www.youtube.com/watch?v=APNOcW0NFPY https://www.orumodofumo.com/pt/em-circulacao/o-limpo-e-o-sujo-de-_12 https://issuu.com/teatro_sao_luiz/docs/fs_ciclosete
https://alkantara.pt/arquivo/quinta-feira-abracadabra/
* Biografia de Susana de Medeiros
Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra e em Artes Plásticas pela ESAD_CR, é também bacharel em Belas Artes – BA Fine Arts (Hons) – pela Universidade de Nottingham Trent, Nottingham, Inglaterra. Frequenta atualmente o doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
Frequenta várias formações na área do movimento e da dança contemporânea – com Clara Andermatt, Filipa Francisco, Madalena Vitorino, Vera Mantero, Silvia Real. Na área da cerâmica destacam-se as formações no C.R.A.T, Porto, na Oficina de Angra, Angra do Heroísmo, Terceira, Açores (em parceria com o AR.CO e a Universidade de Boston), e no âmbito de uma Bolsa do programa europeu Grundtvig, um curso, organizado pela Artists’ Union of Latvia, que funcionou parcialmente nas instalações do Departamento de Cerâmica da Academia de Belas Artes de Riga, na Letónia.
Leciona desde 2007 no ensino universitário, na Licenciatura em Artes Visuais (FCHS) da Universidade do Algarve.
Organiza, desde 2004, como curadora-artista e/ou produtora, vários projetos de carácter colaborativo / participativo que problematizam as relações entre a arte, o território, a memória e a comunidade com destaque para Corações ao Alto (Igreja da Misericórdia em Aljezur, 2016), Linguajar- projecto vocal em terras de mar (Mercado Municipal de Aljezur, 2017, Programa 365 Algarve) ambos com a artista Margarida Mestre, o projecto Cal Viva – residência artística e ciclo de conversas (Centro Histórico de Aljezur, 2017, Programa 365 Algarve), os ciclos de arte contemporânea 2ou3x7 e Derivas Continentais na Ermida de Nª Srª de Guadalupe (DiVaM, Raposeira, Algarve) e No Jardim da Dúvida (Arte Contemporânea – intervenções temporárias no espaço exterior da Ermida de Nª Srª de Guadalupe).
Desenvolve projetos de educação não formal em artes visuais e performativas e em cinema – com a Casa B(ranca) – Associação Cultural (participando no projeto educativo Gymnasium – O Pensamento transformou o Infinito em Serpente, Laboratórios de Experimentação artística em contexto escolar, 2018 e 2021), na Oficina do Espectador do TEMPO (Teatro Municipal de Portimão) com a atriz Manuela Pedroso (Conta-me um Turco – Festival Cidades Invisíveis:Turquia e sobre a obra literária de Manuel Teixeira Gomes), na Biblioteca Municipal de Lagos, nas bibliotecas escolares do concelho de Lagos, no Centro Cultural de Lagos, entre outras instituições públicas e privadas. Cria, em conjunto com Jorge Rocha, o projeto de divulgação de cinema de autor Quartas de Cinema (Biblioteca Municipal de Lagos). Integrou os corpos sociais de várias associações culturais: LAC – Laboratório de Artes Criativas (Lagos), Xerém (Lisboa) e Tertúlia (Aljezur). Pertencendo, actualmente, ao coletivo de artistas da Associação 289 – Arte contemporânea, em Faro.
Artista multidisciplinar (desenho, escultura, vídeo, fotografia e instalação) na sua prática artística tem vindo, nos últimos anos, a abordar o território como um laboratório e levantar questões sobre a construção da ideia de natureza. Entre os locais onde desenvolveu projectos como artista plástica destacam-se Cuenca (Espanha), Maputo (Moçambique), Nottingham (Inglaterra), Nova York (E.U.A.), São Petersburgo (Rússia) e vários locais em Portugal.
Nota: Susana de Medeiros foi a oradora convidada no Workshop «Expressar a Europa através da Arte e dos Valores» a 28 de abril último, a convite do CDE – Centro de Documentação Europeia da Universidade do Algarve, no âmbito da preparação do Dia da Europa no Algarve assinalado a 10 de maio nesta vila algarvia .
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