A denúncia partiu de quem menos se esperava. Uma mulher decidiu escrever à empresa pública onde o marido trabalhava há mais de duas décadas, garantindo que ele estava a exercer uma atividade remunerada numa segunda empresa enquanto se encontrava de baixa médica por depressão. O alerta, inicialmente visto como um relato pessoal, tornou-se o ponto de partida para uma investigação formal que confirmou os factos e acabou por ditar o despedimento disciplinar do trabalhador.
De acordo com o Noticias Trabajo, que divulgou o caso com base em informação do jornal francês Le Figaro, a infração enquadra-se numa das sanções mais graves previstas no estatuto das indústrias elétrica e gasista em França.
Denúncia e investigação interna
Segundo o Noticias Trabajo, a baixa médica estendeu-se entre novembro de 2015 e janeiro de 2016, período durante o qual o trabalhador ministrou várias formações para outra empresa. A publicação explica que a investigação interna contou com a colaboração dessa entidade, que forneceu horários, faturas e comprovativos de participação em oito sessões remuneradas.
De acordo com o Le Figaro, estes elementos foram determinantes para abrir um processo disciplinar que culminou na convocatória do trabalhador em agosto de 2016.
Meses depois, a empresa aplicou a figura administrativa de “reforma obrigatória”, expressão que, segundo o advogado laboralista Roman Guichard citado pela imprensa francesa, funcionou apenas como forma jurídica para o que era, de facto, um despedimento disciplinar por falta grave, ao abrigo do estatuto profissional do setor energético.
Tribunal valida despedimento por falta grave
O caso não terminou aí. O trabalhador contestou a decisão e pediu uma indemnização superior a 140 mil euros, alegando que a segunda atividade não causara qualquer dano concreto à empresa e que não existira intenção de enganar o empregador.
No entanto, tanto o tribunal de primeira instância como o Tribunal Superior rejeitaram os seus argumentos. Segundo a publicação francesa citada pelo Noticias Trabajo, o estatuto aplicável ao pessoal das empresas públicas do setor elétrico e gasista proíbe o exercício de qualquer atividade remunerada durante uma baixa médica, independentemente da existência de prejuízo para a entidade patronal.
A decisão final foi confirmada pelo Tribunal de Cassação em junho de 2025. De acordo com a análise jurídica divulgada pela Lexbase, motor de pesquisa jurídica francês, trabalhar remuneradamente durante uma baixa médica constitui, neste regime profissional, uma violação de tal gravidade que impede a continuidade do vínculo laboral. O acórdão afastou também qualquer direito a indemnização.
Consequências e quebra de confiança
O caso ganhou destaque mediático em França, não apenas pela denúncia ter sido feita pela própria esposa, mas pela forma como os tribunais reforçaram a ideia de que a confiança é parte essencial da relação laboral, sobretudo em contextos de baixa médica prolongada.
A norma procura assegurar que as baixas são concedidas apenas quando existe incapacidade real e que não são usadas como período para exercer outras atividades remuneradas.
Com o acórdão, o trabalhador ficou sem emprego, sem indemnização e com todas as instâncias judiciais a confirmar a existência de uma infração disciplinar grave.
E em Portugal?
No ordenamento jurídico português, a lógica não é muito diferente. Durante uma baixa médica, o trabalhador não pode exercer qualquer atividade laboral remunerada que seja incompatível com a incapacidade que justificou a emissão do certificado.
De acordo com o Código do Trabalho e com a informação disponibilizada pela Segurança Social, o subsídio de doença pressupõe impossibilidade de trabalhar, pelo que qualquer atividade paralela que contrarie este pressuposto pode levar à suspensão da prestação e à exigência de devolução dos montantes pagos.
Segundo esclareceu a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa em análises recentes, trabalhar durante uma baixa pode constituir justa causa de despedimento se houver violação do dever de lealdade e se a atividade exercida revelar capacidade laboral incompatível com a incapacidade declarada.
É uma avaliação feita caso a caso, mas os tribunais portugueses têm confirmado despedimentos quando entendem que o comportamento frustra o propósito da baixa médica.
Na prática, Portugal e França convergem num ponto essencial: sempre que o trabalhador está dispensado por incapacidade, qualquer atividade paralela que revele aptidão laboral ou que coloque em causa o dever de lealdade pode ser considerada infração grave. Além do risco disciplinar, há ainda o risco de devolução das prestações recebidas.
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