Slavoj Žižek disse-o na Feira do Livro de Frankfurt: persiste a cultura de cancelamento, cada vez mais evidente e iminente. Da direita e da esquerda.
Foi óbvio quando cancelaram a entrega de um prémio à autora Adania Shibli nessa mesma feira. Foi também óbvio, quando a Universidade de Vermont cancelou uma palestra com o autor palestiniano Mohammed El-Kurd. As razões são simples: é inconveniente ser palestiniano neste cenário. Ou, se lermos o subtexto, todos os árabes são terroristas por associação.
Os exemplos pululam, não apenas sobre esta questão, mas sobre todas as que divirjam do pensamento dominante, não necessariamente o da maioria, mas aquele que menos choca com a zona de opinião onde os formadores da mesma pretendem conduzi-lo.
A questão da Palestina é muito mais complexa e antiga do que um mero ataque do Hamas, que condeno. Condeno, mas não aceito tomá-lo pelo seu valor nominal, ou seja, não pode ser interpretado de forma sensacionalista e emocional, onde o que conta são a juventude, a inocência, a proveniência ou a beleza das vítimas.
A morte de civis é sempre condenável, seja em que circunstâncias for (e também o é a de militares). Mas, enquanto não se abordar esta questão de forma séria, isenta e considerando a posição geopolítica e estratégica determinante e o contexto histórico de Israel, a única coisa que conseguiremos, será encontrar vítimas e culpados, o bem e o mal. E se há exercício em que a política domina é o do maniqueísmo, socorrendo-se da personificação do mal, à maneira religiosa, para se entrincheirar numa suposta altivez moral. Mas, não há ídolos sem pés de barro.
É preciso não esquecer, nunca esquecer, o gigantesco pormenor raramente mencionado nos comentários: a Palestina já existia (reconhecida pelo menos desde o tempo de Heródoto) como tal tendo sido território ocupado por Israel. Israel que joga constantemente a carta do antissemitismo quando se aborda este ponto. Israel, a nação judaica cuja criação em território palestiniano até por membros do nacional-socialismo alemão foi apoiada. Também a Europa e os EUA apoiaram a sua fundação, desde que distante de terreno ocidental. Não só se livraram de milhões de judeus sem pátria (falemos então de anti-semitismo) como ainda ganharam uma posição de controle importantíssimo no médio oriente. Médio-oriente cujos países mais não foram do que criatividade administrativa ocidental, segundo interesses económicos próprios, após o desmantelamento do Império Otomano no fim da Primeira Guerra.
Não subscrevo a ideia de que o Hamas é apenas um movimento de libertação, mas é um subterfúgio colonialista acusar de terrorismo toda e qualquer resistência por parte dos colonizados. Reafirmo que não apoio o ataque do Hamas, mas chamo a atenção para a metodologia segundo a qual, a nação norte-americana foi fundada – com demasiados paralelismos com a de Israel. E também os norte-americanos se rebelaram contra os seus colonizadores, socorrendo-se de técnicas que, à luz da sua política actual, seriam consideradas terroristas. Apesar de tudo o que o Hamas faz e fez, também tem um papel determinante na acção social da Palestina, providenciando apoio negado pelo resto do mundo. Assim é, porque Israel tem constantemente aumentado o nível de opressão, sendo os colonatos apenas a face mais visível e óbvia. Não faltam vídeos, artigos e relatos ao longo dos anos, das mais diversas formas de apropriação israelita, desde espancamentos, torturas, roubos, violações, homicídios e descriminação (esta prevista legalmente em Israel) desde 1948. A sua fundação foi baseada em actos terroristas – não diferentes dos do Hamas ou do ISIS – que muitos judeus condenaram, tal como condenam hoje a resposta desproporcionada e mal direcionada de Israel, que ataca insistentemente a população palestiniana, ao invés dos perpetradores do ataque. Judeus esses que também condenam a gestão genocida do território. Vidas são vidas, não obstante o lado em que estão, mas há uma permanente e insistente desvalorização, por parte da comunicação e das políticas ocidentais, da perda de vidas cuja existência não reflictam a mentalidade colonizadora primeiro-mundista. Essa forma de descriminação estrutural – herdada do colonialismo – mais não é do que xenofobia e racismo encapotados e conduz a atrocidades como esta. Nunca ouvimos mencionada a arabofobia porque os racistas são sempre os outros.
A conivência de parte da ONU e a complacência de outra parte, trouxeram-nos aqui. O Hamas é tanto fruto do radicalismo islâmico como da indiferença e dos jogos de interesse da hegemonia ocidental.
Infelizmente, o jornalismo actual é feito de sangue e emoções baratas, e privilegia o drama humano em vez da informação factual, impedindo que cada um tome uma posição baseada em factos e não em avalanches informativas sem nexo ou contexto. Socorro-me novamente de Slavoj Žižek na Feira do Livro de Frankfurt: apenas os livros resolvem.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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