“A história do teatro português lembra um descampado liso
donde saem solitários dois penedos: Gil Vicente e Garrett”.
António José Saraiva in “Para a história da Cultura em Portugal”
Toda a ciência parte da interrogação e de hipóteses, verificáveis e confirmadas ou não, assim se procura a descontaminação de determinismos ideológicos que alteram e seleccionam factos.
Um desses temas deles é a existência de um teatro na cultura portuguesa.
António José Saraiva, historiador reconhecido da literatura, que com Óscar Lopes assinou a “História da Literatura Portuguesa” obra de incontornável importância, procurou sínteses noutros domínios. Evidentemente que a frase acima citada, dentro do estilo de pensador heterodoxo que sempre foi, não pode ser levada à letra, há um mundo a descobrir no teatro como nas outras artes portuguesas, sobretudo quando mergulhamos nos séculos mais longínquos por investigar.
Em textos sobre a antiguidade do teatro português surge muito referida a doação em 1193 de terrenos em Canelas de Poiares do Douro, pelo rei D. Sancho I aos histriões Bonamis e Acompaniado em reconhecimento pelos seus espectáculos. Estes ofereceram ao monarca um “arremedilho”.
O “arremedilho” era uma comédia de conteúdo jocoso, uma espécie de válvula de escape para as tensões sociais, para Luciana Stegagno Picchio uma “imitação burlesca” para ridicularizar determinadas personagens e comportamentos.
Existe a ideia de que o teatro português terá “nascido” em 1502 com a autorização concedida a Gil Vicente para representar “O monólogo do vaqueiro” nos aposentos de D. Maria, esposa do Venturoso, junto ao berço do recém-nascido Príncipe João, mais tarde D. João III. Referem-se como testemunhas dos factos o cronista Garcia de Resende e Luís Vicente filho do escritor e também ourives.
O excesso de confiança em documentos coevos, alguns claramente encomendados, ou na inexistência deles, tem levado a história do País para territórios equívocos.
Não é de estranhar a tese do nascimento do teatro português no início do século XVI com menorização das representações anteriores por jograis e bobos, de teatro popular, pastorais de natal e outras formas consideradas menos próprias.
Luciana Stegagno Picchio, que em 1964 escreveu na sua língua materna a “Storia del Teatro Portoghese”, traduzida para português por Manuel de Lucena e editada pela Portugália, nela refere uma pastoral da noite de Natal descoberta num breviário do século XIV no mosteiro de Santa Cruz, levanta dúvidas quanto aos fundamentos em teses da proclamada inexistência de um teatro medieval litúrgico em Portugal tal como ocorria em toda Europa.
Sabe-se através de documentação arquivada que existiam proibições da prática de teatro e bailes populares por parte de bispos e do clero para impedir “devassidões”, o que prova o contrário, existiu um teatro medieval português embora malquerido e vigiado.
O teatro pela sua natureza de espectáculo ao vivo, sem intermediação, foi e é visto com desconfiança pelos poderes, temem a critica social e o riso, daí que a comédia tenha sido utilizada durante a ditadura, sobretudo na “revista à portuguesa”, para passar para o palco o que era interdito na rua.
A cultura é a produção de significados, também no teatro e nas artes, neles se afirmam ideias e aspirações humanas.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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