Não sei – e quando digo que não sei, minto, porque é evidente – quando é que aceitámos a subordinação aos juízes dos fundos financeiros como condição primordial para materializar a criatividade. Algures a meio do caminho entre a tábula rasa e o estatuto artístico, deixámos de ter como fim a criação enquanto acto em si próprio e passámos a ter a remuneração como objectivo principal em vez de colateral.
Não me refiro ao clássico “pagar para tocar”. Falo de outra coisa inteiramente diferente. É imperativo fazer alguma coisa acontecer – um concerto, um livro, uma exposição – pelo simples prazer, necessidade ou inevitabilidade de o fazer, independentemente das condições existirem ou não. Veja-se o caso do Centro Comercial Stop no Porto.
Fazer alguma coisa acontecer nesta região tão culturalmente depauperada. Onde a oferta cultural está durante três meses centralizada na população flutuante. O resto do tempo é como se os residentes mais não fossem do que cidadãos temporários. Bem sei que o Algarve não é todo igual, mas isto reflecte muitas zonas litorais e quase todas as do interior.
Portugal não tem, por defeito, uma cultura de arregaçar as mangas. É ainda o país do desenrasca. Mas sob essa superfície e ao longo da nossa infelizmente pouco documentada história artística e da sub e contra culturas, existe um significativo e valioso legado do DIY. Para além das óbvias ramificações do punk que muito contribuíram para generalizar esta postura, os exemplos pululam. Como na primeira república, altura de que data o Jornal a Batalha, ainda hoje publicado.
Retrocedendo a partir dos recentemente celebrados 18 anos da Lovers & Lollypops e passando por associações com trabalho paradigmático na região sul como é o caso da ARCM, da Alfaia, das Ideias do Levante, ou da editora Sul, Sol e Sal – só para referir algumas que não estarão necessariamente no radar do grande público – tivemos a Ama Romanta, a Bee Keeper, a &etc, a frenesi ou a Galeria ZDB. Isto sem aludir a movidas artísticas, de menor dimensão que noutros países, é certo, mas que ainda assim deixaram as suas marcas, mesmo que à posteriori. Ou não precisássemos nós da chancela dos especialistas para conseguir ver o óbvio já totalmente fora de tempo, precisamente porque não formamos público, deformamo-lo.
Nos últimos anos, apesar da ineficaz, escassa e ultra bucrocratizada distribuição dos auxílios dedicados à cultura por parte dos organismos públicos, que age como uma corporação ao ceder primazia à actualidade dos temas ou à visibilidade dos preponentes, tornámo-nos viciados em apoios. Tanto assim é que, a grande maioria dos artistas com quem falo no sentido de estabelecer colaborações (palavra chave aqui) com a expectativa de criar uma movida regional, em particular nas zonas mais dormentes, me apresenta o orçamento como se eu estivesse a contratar alguém. Colaborações artísticas não são o mesmo que um contrato por uma câmara ou mesmo por uma associação. Surpreende-me ter de explicar isto com tanta frequência.
Não sendo eu alheio ao facto de que barrigas vazias não pensam bem e que alguns de nós fazem, ou tentam fazer, vida disto, não consigo deixar de me perguntar o que seria da história das ideias, se a primeira pergunta que um Jackson Pollock, uma Barbara Krueger, uma Angela Davis, um Henry Rollins ou uma Patti Smith colocassem fosse “Há dinheiro?”
Não há dinheiro, colegas. E quando há, não chega a todo o lado. Quem não tem cão, caça com gato. Se não caça, é porque a fome é escassa.
Não que não exista uma zona cinzenta neste caso, como em todos os outros. Mas enquanto o intuito comum e derradeiro não tiver o carácter altruísta e prazeroso de colectivizar e gerar uma comunidade cultural – particularmente em zonas cuja ideia de cultura anda de mãos dadas com a de turismo – como aconteceu em locais como Barcelos ou Aveiro, tudo ficará na mesma. E se há quem prefira assim, fazendo de tudo uma tripe de ego e continuar o rei do bairro em vez do fazer parte da resistência, as fundições e os alicerces da edificação regional manter-se-ão intocáveis tal qual como são. Servindo-se de muitos para servir poucos. E sem criar espaço para projectos novos. O que naturalmente perpetua a dependência do turismo que se move por todos os motivos menos os da identidade regional. Pelo motivo simples de que o que promovemos é semidestruído património natural. Como se não houvesse mais nada.
Se o fito da cultura e da arte não é o de colocar questões, por vezes incómodas e desagradáveis, criar debate e provocar, então a arte está morta e apenas nos alimentamos de bocados do seu cadáver mercantilizados enquanto comodidades.
Se o fim da cultura e da arte é ser esteticamente agradável e entreter, então, ao invés de debater com a realidade e a mentalidade do nosso tempo, estamos apenas a pactuar com o automatismo e a morte do espírito humano. Não muito diferente do que acontece com a IA que tantos temem agora. Mas a verdade, é que há humanos mais automatizados do que algumas máquinas.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: A cultura não se mede aos aplausos | Por Cobramor