Como tantas coisas, a viagem mudou de forma profunda nas últimas décadas. Viajar é um fenómeno relativamente recente. Salvo excepções, não era uma prática habitual, nem tampouco comum, à generalidade da sociedade e tinha como dimensões importantes: o desconhecido, a aventura, o novo e o imprevisto – a improvisação…
A vulgarização da viagem, eclode com a chegada das companhias de aviação de baixo-preço. Terá começado na década de 90 com a companhia britânica GO que ligava Faro a Bristol, ou outro destino menos prioritário no sudoeste do Reino Unido, e a AirBerlim, para a sua base de Maiorca. Também a Ryanair servindo Girona (que era vendida como Barcelona).
Na fase seguinte há uma dinâmica confrontacional entre os preços do transporte e os do alojamento.
Proponho-lhe, pois, que me acompanhe, numa Viagem com maiúscula, uma viagem (bem) casada com a semiótica. Será um exercício onírico e hedonista
O público, habituado a ver o transporte aéreo como componente caro, não entendia a razão da mudança não ter chegado ao alojamento.
Entra então no mercado a AIRBNB, recorde-se, sob a premissa de que o hóspede ficava na casa ‘do hospedeiro’ erigido em o anfitrião ideal, que conhecia todos os lugares interessantes e que abriria ao hóspede a porta do mais genuíno do destino.
Porque o transporte local ainda era dispendioso, o mercado inventou o UBER. Também este, vendido como economia social, terceiro sector, em que, nos seus percursos costumeiros, alguém ‘partilhava’ (era a palavra de ordem) o seu carro, com outra pessoa interessada no mesmo trajecto.
Agora sim, com todos os ingredientes reunidos, faltava apenas trabalhar a motivação, trazida pela internet, sob a forma de sites de partilha de imagens.
Estava aberta a porta grande da democratização da viagem.
Só que esta transformação, em paralelo com a proliferação dos novos serviços proporcionados pela internet, ocorreu expurgando-a do desconhecido e da aventura: para o bem e para o mal era um novo mundo.
O novo viajante, consulta antecipadamente a meteorologia e vê mesmo o estado do tempo no destino através das webcams. Deixou de precisar de um passaporte e não só o seu dinheiro passou a ser comum aos principais destinos como os meios de pagamento que usa habitualmente são universais. Sabe tudo o que lhe pode interessar – e também o que não – sobre o destino escolhido e tem mesmo uma lista de locations que não pode perder. Instagramizável tornou-se um verbo!
A viagem foi radicalmente transformada. Agora viaja-se por tudo e por (quase) nada. Lugares que a ninguém ocorreria visitar passaram a receber visitantes, apenas por via destas dinâmicas atractivas, e porque são acessíveis e baratos.
Se o leitor, justificadamente impaciente, se começava a perguntar, é neste momento que introduzo o tema da coluna.
O que ficou da Viagem?
A viagem num sentido lato, que assumiria o tom de uma reflexão itinerante, era antes, algo sublimemente balizado por Torga: “caminhar como um cão nas pegadas dos grandes homens” e, para “deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto”.
Se a trágica desaparição desses propósitos, é coisa que também encanita o leitor, fique sabendo que, nas próximas crónicas, vamos aprofundar, concretizando, esta reflexão.
Nesta senda, teremos também como horizonte o conceito de ‘capacidade de carga’ que a OMT define como o número máximo de pessoas que podem visitar determinado local turístico, sem afectar o meio físico, económico ou sociocultural e sem reduzir de forma inaceitável a qualidade da experiência dos visitantes. E dos locais! Para o caso de o leitor ter andado distraído e não ter visto as manifestações, recentes, em Barcelona e em Bilbao, mas até, pasmem (!) nas Canárias e nas Baleares. Nada disso observámos no Algarve, mas as coisas sendo como são, cedo ou tarde alguém promoverá aqui também algum desses epifenómenos.
Vamos estar atentos aos Limites da Mudança Aceitável, uma ferramenta nem sempre simples de aferir, muito particularmente quando já ocorreram as perturbações ambientais e/ou sociais.
Estas reflexões, tornaram-se pertinentes, com o advento da “nova viagem”, da viagem sem propósito nem relevância, para experienciar, dizem-na.
Proponho-lhe, pois, que me acompanhe, numa Viagem com maiúscula, uma viagem (bem) casada com a semiótica. Será um exercício onírico e hedonista.
Em breve, responderemos então à questão na nossa epígrafe:
O que ficou da Viagem?
Quem é o cão e quem é o manjerico? Espantemo-nos!
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia