Nos 50 anos do 25 de Abril, o Postal do Algarve publica o último de três cadernos especiais, da autoria do professor de História Idalécio Soares, sob o título genérico de O ALGARVE E O 25 DE ABRIL.
Idalécio Soares, investigador de História Local e Regional, é também autor dos livros Vítimas da Ditadura no Algarve, Três casos, três histórias subtraídas ao esquecimento (2017, Sul, Sol e Sal) e Por Dentro da Crise Olhão e o Algarve no final da Primeira República (2021, Sul, Sol e Sal).
3 – OS PRIMEIROS DIAS
O poeta vai à frente
veste um fato novo feito expressamente para esse dia
leva o estandarte guardado há muitos séculos para essa ocasião
e distribui esperanças rubras em flor
a todos os manifestantes
Uns põem-nas na lapela
outros por trás da orelha
alguns guardam-nas no coração.
Por último a imensa multidão
que esperou longos anos pelo dia anunciado
Manuel Madeira,
1948(1)
“O DIA INICIAL”
Tal como em grande parte do país, no Algarve, a mudança de regime foi, nos dias que se seguiram ao golpe militar, recebida com manifestações generalizadas de regozijo por parte da população.
Algumas num tom ainda baço, revelador de hábitos de autocensura ou de conformismo com a ordem política anterior há muito enraizados nos seus redatores, outras de forma mais exuberante, as múltiplas notícias publicadas pela imprensa, nacional e regional, permitem-nos ter uma compreensão alargada, quer do teor e amplitude dessas manifestações, quer do modo como, em alguns casos, o fim do regime ditatorial foi sentido pelos seus habitantes.
No início entre a incerteza e a expectativa quanto ao desfecho do movimento militar em curso, o dia 25 de Abril parece ter sido vivido no Algarve sem outras alterações que não aquelas que resultaram do encerramento do tráfego aéreo no país.
No Aeroporto de Faro, «apenas aterrou um avião vindo de Luanda e que se dirigia para Lisboa». «À falta de voos, os turistas dos “charters” que se encontravam no Algarve e se destinavam (…) a Copenhaga e a Dusseldorf tiveram de recorrer a autocarros para tomar os voos de destino em Sevilha. Os mesmos autocarros, de regresso, conduziram turistas ao Algarve».(2) «Outros, porém, viram as suas férias no Algarve ampliadas em face da dificuldade de ligações».(3) Ao todo, o encerramento do aeroporto afetou dezoito voos, essencialmente turísticos, cujas chegadas ou partidas estavam previstas para Faro.
No resto, o dia parece ter decorrido normalmente, em ambiente de “calma absoluta” por parte da população, como todas as notícias fazem questão de frisar. «Alguns estabelecimentos bancários encerraram as suas portas a meio da manhã e as aulas, nos estabelecimentos de ensino, funcionaram quase plenamente. As repartições públicas continuaram no seu labor e a maioria dos estabelecimentos comerciais estiveram abertos durante todo o dia. O Emissor Regional do Sul transmitiu música portuguesa, tendo os seus noticiários das 12 e das 19.30 h sido preenchidos com notícias de âmbito regional».(4) Os transportes ferroviários e rodoviários funcionaram também como habitualmente.
Sem operações militares em curso na província, além da episódica tomada dos retransmissores da Fóia(5), as tropas aquarteladas nas três unidades militares do Algarve mantiveram-se durante todo o dia recolhidas nos respetivos quartéis, em obediência à «prevenção rigorosa» ordenada pelo comandante da respetiva região militar, que, só um pouco antes da rendição de Marcelo Caetano, seria levantada.
Tal como noutras partes do país, a população da província tomou conhecimento do golpe militar através dos comunicados do Movimento das Forças Armadas, transmitidos pela rádio, desde as primeiras horas da madrugada, e do inevitável passa palavra que, desde logo, se lhe seguiu. Muitos outros, com familiares ou amigos em Lisboa, recorreram ao telefone para, mais detalhadamente, se inteirarem do que se estava a passar.
Grande foi também a procura das primeiras edições dos jornais com notícias sobre o movimento militar. Sequiosos de informação (tanto mais porque, com o corte dos retransmissores da Fóia, as emissoras de rádio deixaram de transmitir em FM a partir do final da manhã do dia 25), os algarvios «“assaltaram” os postos de venda de jornais, mal os carros de distribuição entravam nas localidades», fazendo com que os mesmos se esgotassem rapidamente.(6) Em Albufeira, de acordo com outra notícia, publicada dias depois, «os boletins noticiosos das emissoras de rádio e da televisão» eram escutados «com a maior atenção e os jornais lidos com o maior interesse, registando-se à sua chegada enormes aglomerações de pessoas», que «civicamente» se batiam pelos mesmos.(7)
AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES
As primeiras manifestações de regozijo pelo triunfo do movimento militar ocorreram logo no dia seguinte em Lagos e Faro, cidades onde estavam sediadas duas das três unidades militares da província: o CICA 5 e o RI 4.
À tarde, em Lagos, jovens, na sua maioria estudantes, desta localidade ou das vizinhas cidades de Silves e Portimão, ali chegados em camionetas e automóveis particulares, «percorreram as principais ruas da cidade», dando «vivas a Portugal, à liberdade e ao povo». «Transportando cartazes nos quais se podiam ler frases de incitamento e agradecimento às Forças Armadas e ao general Spínola, os manifestantes deslocaram-se à Câmara Municipal e ao quartel ali existente, onde foram recebidos pelo respetivo comandante (nesta altura, já o major Leal Branco), que lhes agradeceu todo o apoio manifestado. Seguidamente, encaminharam-se para o edifício da Legião Portuguesa», cujo emblema arrancaram da porta, «e para a sede da Mocidade Portuguesa, na qual, contudo, não conseguiram entrar, por se encontrar fechada. Após terem estado na Escola Industrial, os jovens prosseguiram a sua manifestação pela Avenida dos Descobrimentos. Posteriormente, os elementos da Guarda Fiscal estiveram no edifício da Legião Portuguesa, de onde levaram todo o armamento que ali se encontrava depositado».(8)
À noite, agora em Faro, «muitas centenas de pessoas, com cartazes vitoriando a Junta militar», desfilaram pelas principais artérias da cidade, indo quedar-se na Rua Bernardo de Passos, frente à subdelegação da PIDE/DGS(9), cujas instalações seriam, na sequência disso, cercadas e ocupadas por forças do RI 4 com o auxílio de efetivos da PSP. Da ocupação do edifício resultou a prisão de um inspetor e cerca de uma dezena de agentes da odiada polícia política. Na rua, «o povo, em que sobressaíam centenas de jovens, pronunciava vibrantemente slogans contra o fascismo e os crimes cometidos».(10) As operações prolongaram-se pela madrugada fora, tendo, durante o seu decurso, sido constante o vaivém de viaturas militares entre a sede da polícia política e o quartel.
Em Portimão, onde estava sediada a outra subdelegação da PIDE/DGS na província, realizou-se, já na manhã de sábado, uma «enorme manifestação da população local de regozijo e apoio ao MFA». De acordo com a mesma notícia, «jovens do liceu e das escolas» terão apedrejado as instalações da polícia política, assim como alguns dos seus agentes fugido pelo telhado das mesmas(11) (tal é, no entanto, desmentido por Glória Alves, o oficial que, nessa manhã, comandou a ocupação das ditas instalações).
A partir da tarde do dia 27 – sábado – as manifestações generalizam-se a toda a província, atingindo o seu máximo no 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, este ano pela primeira vez, desde o final da Primeira República, celebrado em liberdade. Faro e Lagos, onde, como se viu, logo no dia 26 se tinham realizado as primeiras manifestações, foram não só as localidades do Algarve onde nos dias seguintes ao 25 de Abril ocorreram mais movimentações populares como algumas daquelas onde as mesmas mais mereceram a atenção da imprensa.
Em Faro, a manifestação, convocada para o fim da tarde de sábado pela CDE local, reuniu «muitos milhares de pessoas»(12), de todas as idades, empunhando cartazes, dísticos e bandeiras nacionais. Apesar da chuva, que tinha desabado sobre a cidade «umas horas antes»(13), a população compareceu cedo e em grande número, no Jardim Manuel Bívar, para onde estava previsto o início da manifestação.
«A meio da tarde, começou a notar-se um movimento desusado por toda a cidade, o qual alcançou os pontos mais nevrálgicos do centro citadino, dada a rapidez com que a notícia da manifestação se propalou. Notava-se nos rostos que havia um anseio incontido de desabafar, de gritar, sem a preocupação de ter a seu lado, à frente ou atrás, o rosto bélico da PIDE, o seu viva à Liberdade e à Democracia, e ao mesmo tempo o seu grito “abaixo o fascismo e os seus dentes de bronze!”.»(14)
A manifestação iniciou-se por volta das 19 horas com os acordes do Hino Nacional, tocados pela Banda Artistas de Minerva de Loulé e acompanhados em coro pela multidão. No seu trajeto, feito a pé, mas a que se juntaram numerosas viaturas, ostentando cartazes e bandeiras nacionais e com os seus claxons tocando estridentemente, os manifestantes seguiram pela Rua de Santo António, Largo da Alagoa e Rua Caçadores 4, até ao quartel do RI 4, no Largo de S. Francisco, onde eram aguardados por nova multidão que, entretanto, aí se tinha juntado. «Viam-se muitas bandeiras nacionais, cartazes, e o entusiasmo popular era extraordinário». Nas janelas do edifício do Regimento, em cima dos telhados e na vizinha Igreja de S. Francisco numerosos militares correspondiam às «saudações entusiásticas do povo».(15)
Frente à porta de armas do quartel, na presença do comandante, do 2.º comandante e demais oficialidade do regimento aí sediado, o piquete da guarda, que nesse dia estava de serviço, apresentou armas e, ao som dos respetivos clarins, todos os militares fizeram continência à bandeira, na altura hasteada. Acompanhados de novo pela banda de Loulé, os manifestantes voltaram a entoar o Hino Nacional, só então tendo começado os discursos. Primeiro, em representação da CDE, pela qual fora candidato a deputado em 1969, o advogado Dr. Luís Filipe Madeira, «diversas vezes interrompido», ora pelo Hino Nacional, ora por vivas à Democracia e a Portugal. Depois, em nome dos militares, o comandante do regimento, coronel Octávio Pimentel, a quem, por entre aplausos e palavras de ordem de reconhecimento às Forças Armadas, «uma senhora da CDE do Algarve» (que a notícia não identifica) entregou um ramo de flores. Terminada a cerimónia, os manifestantes retomaram o cortejo, agora em sentido inverso, até ao ponto de partida, de onde só «muito tempo depois cada um seguiu rumo à sua vida, cheio de felicidade e alegria pois à maioria, senão à quase totalidade dos presentes, aquele inesquecível momento ainda parecia um sonho, o acordar de um pesadelo».(16) Nos cartazes e faixas erguidos pelos manifestantes podiam ler-se os seguintes dizeres: Nunca tão poucos/fizeram tanto/por tantos; Democratas saúdam/ Portugal Democrático e Livre: Abaixo o fascismo.(17)
Em Lagos, também no sábado à tarde, a concentração, a que compareceram igualmente «milhares de pessoas», teve lugar na Praça Gil Eanes, onde, «numa tribuna improvisada»(18), usaram da palavra vários oradores, dos quais três civis – o advogado Dr. Vasco Gracias, o arquiteto Albuquerque Veloso (também candidato da CDE em 1969 e «a quem se deveu a iniciativa da manifestação») e Luís da Glória – e dois militares – o major Leal Branco e um jovem aspirante miliciano -, todos «entusiasticamente aclamados pela multidão»(19). No final, os manifestantes «desfilaram pelas principais artérias da cidade».(20)
Em Loulé, a manifestação iniciou-se às 17 horas, duas horas antes da de Faro, o que permitiu que tanto Luís Filipe Madeira, natural deste concelho, como a Banda local Artistas de Minerva tivessem podido marcar presença nos dois sítios. Respondendo a um apelo da CDE de Loulé, a população encheu por completo a Praça da República, frente ao edifício da Câmara Municipal, de cujo varandim central, o louletano e destacado dirigente da CDE do Algarve Luís Filipe Madeira se dirigiu aos presentes. «A manifestação terminou com o Hino Nacional, acompanhado em coro pela multidão».(21)
Já no domingo, dia 28, Vila Real de Santo António foi outra localidade algarvia cuja manifestação mereceu a atenção da imprensa. A manifestação, em que se incorporou a Banda Musical do vizinho concelho de Castro Marim, começou a esboçar-se no sítio do Encalhe, «ao acabar o desafio de futebol entre o Lusitano e o Desportivo de Beja»(22) tendo, já na sua fase final, depois de percorridas várias ruas, chegado a reunir «cerca de 2000 pessoas.»(23)
«A população de Vila Real de Santo António teve na tarde de domingo a sua primeira (…) reunião inteiramente livre, sem pressões nem influências de qualquer ordem ou espécie. Nela entrou quem quis, falou quem o desejou e, assinale-se, tudo decorreu dentro do mais esclarecido civismo, sem que cada um, através do calor dos seus ditos, perdesse a serena consciência do grande momento que ao âmbito nacional se vive e um sentido de patriotismo digno que é apanágio de todo o português que se preza.»(24)
Durante o trajeto, os manifestantes dirigiram os seus agradecimentos às duas entidades que, aos seus olhos, naquela localidade, melhor simbolizavam as Forças Armadas: o comandante da Companhia da Guarda Fiscal ali sediada, o capitão do Exército Dias Pinto, e o Capitão do Porto, comandante da Marinha Pires Dias. Além de uma paragem, para esse efeito, no quartel da Guarda Fiscal, onde usou da palavra o professor da Escola Técnica Dr. Fernando Furtado, e de outra, na Capitania, onde falou o escritor António Madeira Santos, o cortejo deteve-se ainda por duas vezes na emblemática Praça Marquês de Pombal. Na última delas, já no final, caberia ao comerciante e conhecido democrata Joaquim Correia «agradecer à população vila-realense todo o civismo e patriotismo com que na manifestação soubera conduzir-se.»(25)
Olhão, Silves e Monchique foram outras tantas localidades onde, nos primeiros dias depois do golpe, se realizaram também manifestações. Na primeira, no domingo à tarde, uma manifestação espontânea, promovida por jovens, percorreu «as principais ruas da vila, empunhando dísticos patrióticos».(26) Em Silves, na noite de 30 de abril, a multidão, reunida frente dos Paços do Concelho, «manifestou exuberantemente a sua alegria», entre vivas à Junta militar e ao MDP e palavras de ordem contra a PIDE e a guerra colonial.(27). Em Monchique, em data não indicada, mas antes do 1.º de Maio, o «comício de apoio e solidariedade ao MFA» realizou-se no salão da Casa do Povo, «dentro do maior entusiamo dos presentes». Na reunião, que terminou com vivas ao Exército, a Spínola e à liberdade, foram oradores, o Dr. António Pires Ventura, a professora Maria Laura, António Albano Lopes, o Dr. Luís Catarino, o Dr. Diogo Filipe e dois militares, o capitão José Varela e o major Carlos Leal Branco, desde depois do 25 de Abril comandante do CICA 5, de Lagos.(28)
Em Faro, na noite de segunda-feira, dia 29, e na sequência de uma assembleia distrital anterior, em Loulé, teve, por sua vez, lugar uma reunião alargada da CDE, destinada a estruturar a atividade deste movimento político no concelho (onde, na altura, se integravam as principais correntes políticas democráticas do país). Inicialmente convocada para a sede do Círculo Cultural do Algarve, a reunião, a que «compareceram muitas pessoas», teve, no entanto, por essa razão, à última hora, de ser transferida para um espaço mais amplo, um salão de jogos fronteiro àquela instituição, «de modo que todos pudessem assistir à sessão». Na reunião, que «decorreu com o melhor espírito cívico», os participantes discutiram a orgânica a adotar pelo MDP/CDE a nível concelhio e escolheram a composição da comissão coordenadora provisória a funcionar até ao próximo plenário do movimento: Dr. José de Jesus Neves Júnior, Dr. João Carlos Botelheiro, João de Brito Vargues (os três, membros da mesa que orientava os trabalhos), Morgado André, Campos Coroa, João Maximiano, Álvaro Pedro Café, Leandro Carromba de Sousa, Aníbal Louro Bexiga, João Ramires Fernandes, Manuel José Ramires Fernandes, José da Cruz Santos, José Manuel Raimundo, José Teixeira Faísca, Fernando Santos, Valério Bexiga Grou e Olegário Barão.(29) A nível nacional, cinco algarvios seriam posteriormente escolhidos para integrar a Comissão Central do MDP: Luís Filipe Madeira, Manuel Campos Lima (também candidato em 1969), João Maximiano, José Veloso e João Brito Vargues.(30)
O DIA 1.º DE MAIO
Foi, no entanto, o dia 1.º de Maio aquele em que as manifestações abrangeram um maior número de concelhos da província: nove, ao todo, de acordo com a cobertura da imprensa, dos quais oito, nas respetivas sedes (Faro, Lagos, Silves, Albufeira, S, Brás de Alportel, Olhão, Tavira e Castro Marim), e dois, noutras freguesias (Armação de Pêra e S. Bartolomeu de Messines, no de Silves, Cacela e Monte Gordo, no de Vila Real de Santo António). Em Faro, mais uma vez em clima de festa e convocada pela CDE, a manifestação «congregou milhares de pessoas»:
«Muito antes das 17 horas, já o Jardim Manuel Bívar apresentava um aspeto compacto de público, que empunhava cartazes, que vitoriava, que cantava e traduzia livremente, mas com um civismo impressionante, aquilo que lhe ia na alma. Muitos automóveis transportavam cartazes e dísticos de saudação à ação das Forças Armadas, à Liberdade, à classe trabalhadora e a tudo quanto neste momento une a nação portuguesa na sua caminhada para uma arrancada verdadeiramente histórica.»(31)
No seu trajeto até ao Largo da Sé, para onde se dirigiam, os manifestantes pararam simbolicamente no largo e na rua que até aí ostentavam os nomes de duas destacadas figuras do regime anterior – Carmona e Salazar – e cujas lápides toponímicas tinham, por isso, sido cobertas com dísticos com as novas designações que, por vontade popular, dali em diante passariam a ter: Largo 25 de Abril e Rua 1.º de Maio.
Já no vasto Largo da Sé, «completamente cheio», e de uma das janelas do edifício dos Paços do Concelho, usaram da palavra vários oradores: o conhecido médico oftalmologista e encenador de teatro Dr. Emílio Campos Coroa, o jovem José Manuel Raimundo, o conceituado geógrafo e professor do Liceu Dr. José de Neves Júnior, e o antigo operário corticeiro, várias vezes preso, Manuel da Silva Lagos, na altura emigrante em França, «de onde veio para, nesta hora, estar com os seus companheiros de luta».(32) A terminar, o coronel Octávio Pimentel, «em nome do Exército, agradeceu as manifestações carinhosas que haviam sido dirigidas às Forças Armadas».(33)
Nas restantes sedes de concelho, o figurino das manifestações não foi muito diferente, variando tão-somente os oradores civis e o militar (ou militares) a quem coube fazer os agradecimentos em nome das Forças Armadas.
Em Lagos, a festa começou «às primeiras horas da manhã». «Inibida durante muitos anos de dar sinal de vida no dia que lhe deu o nome», a Filarmónica 1.º de Maio multiplicou-se em voltas pelas principais ruas da cidade.(34) Inicialmente prevista para a Câmara Municipal, uma manifestação seria, devido ao elevado número de participantes, transferida para um campo de futebol. Ao longo do dia, por entre «alegria esfusiante» e «muita música», «os automóveis, a tocarem constantemente as buzinas, não se cansaram de percorrer a cidade».(35)
Em Silves, onde na noite anterior se tinha realizado já uma manifestação, a população dirigiu-se, pelas 17 horas, em cortejo, para um largo da cidade, na ocasião distinguido com o nome de 1.º de Maio.(36)
Muito festejado foi também o 1.º de Maio em Albufeira. Reunidos, pelas 11.30 no jardim do Largo Eng.º Duarte Pacheco, os manifestantes marcharam depois com bandeiras e cartazes para o largo fronteiro à Câmara Municipal, onde se sucederam os discursos. «Entre aplausos e vivas», foram oradores o «grande democrata» e antigo preso político João da Veiga, o Dr. Sales Fernandes, o Padre Piscarreta e o Dr. Luís Filipe Madeira (que, na sua intervenção, compararia a ação dos militares do 25 de Abril à dos conjurados de 1640). No final, e na falta de um oficial, coube a um furriel miliciano, natural da vila, agradecer «a manifestação de apreço que acabava de ser tributada às Forças Armadas». Durante a tarde, «diversos grupos percorreram a localidade, dando largas à sua alegria e realizando pequenos comícios, tudo dentro da maior ordem e do maior civismo».(37)
De festa foi ainda o Dia do Trabalhador na pequena vila de S. Brás de Alportel. Primeiro, junto ao monumento que homenageia o poeta Bernardo de Passos, usaram da palavra Álvaro Botinas, Júlio Negrão e o Dr. Coroa. Depois, os manifestantes desfilaram pelas ruas, gritando “O povo unido jamais será vencido!”.(38)
Em Olhão, os manifestantes começaram por se reunir frente ao Palácio da Justiça, tendo a seguir desfilado pela Avenida da República, até ao Largo da Restauração, apinhado de gente, o mesmo onde, na altura igualmente cheio, dezasseis anos antes, durante a campanha eleitoral, tinha sido recebido o General Humberto Delgado. Neste largo histórico, junto ao monumento que homenageia os heróis olhanenses que, em 1808, se rebelaram contra os franceses, usaram da palavra vários oradores, cujos nomes, no entanto, a notícia não refere. As Forças Armadas estiveram representadas «por um oficial e um sargento do RI 4 e por um oficial da Armada», dos quais também não são indicados os nomes.(39)
Em Tavira, «um mar de gente» concentrou-se na espaçosa Praça da República, frente ao edifício da Câmara Municipal, onde, a uma das suas janelas, usaram da palavra vários «democratas» do concelho: o solicitador Joaquim Teixeira, o proprietário de Santa Catarina da Fonte do Bispo José Guedes Sequeira, o sargento aposentado Joaquim Valente, o comerciante Eduardo Palma, o funcionário da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian Guilherme Camacho, o advogado Dr. Eduardo Mansinho, e o professor da Escola Técnica Rui Figueiredo. A seguir ao Hino, tocado pela Banda da cidade e acompanhado em coro pelos manifestantes, estes, «em cortejo», «dirigiram-se até ao quartel do CISMI, onde, em frente da porta de armas, deram lugar à sua alegria e manifestaram o [seu] agradecimento (…) às Forças Armadas pela deposição do regime».(40)
No extremo oriental do Algarve, realizaram-se três manifestações: em Castro Marim, na sede do concelho (com a participação da banda local e de «muito povo»(41), em Cacela e Monte Gordo, no de Vila Real Santo António (mas das quais, a notícia não dá pormenores).
Apesar de, em Vila Real, não ter ocorrido qualquer comemoração do 1.º de Maio, o Jornal do Algarve não deixou, numa das suas crónicas, de dar conta do «ar» mais «confiante» e «descontraído» com que o dia foi ali vivido:
«Talvez por no domingo anterior se haver realizado uma manifestação de apoio ao MFA, não houve no 1.º de Maio qualquer reunião pública de carácter político em Vila Real de Santo António. O dia, porém, decorreu com mais animação do que é usual, vendo-se nas ruas muitas pessoas cujos rostos deixavam transparecer a satisfação que lhes ia no íntimo, pelos acontecimentos resultantes do 25 de Abril. Aqueles – e aquelas – a quem isso era possível, ostentavam cravos rubros nas lapelas e alguns grupos de jovens entoavam, no passeio, a canção “Grândola Vila Morena”, de José Afonso”, que serviu de sinal para o começo do Movimento das Forças Militares.
Outros grupos de jovens ou adultos comentavam em jeito animado os recentes acontecimentos, conjeturando sobre o que já fora determinado a nível oficial e o que se pensaria fazer em relação à vila, não só do ponto de vista económico, como do social. Num dos grupos dizia-se que tendo o mercado de verdura vila-realense o nome de 1.º de Maio deveria ser o primeiro “estabelecimento” a fechar, de acordo com a determinação do feriado obrigatório. Outros objetavam que nem toda a clientela do mercado estaria de acordo com essa determinação e que nele cada posto de venda tinha o seu próprio encarregado de exploração, não havendo assim empregados que pudessem sentir-se lesados com a abertura em dia festivo.
Pareceu-nos que o “ar” de muitas pessoas era diferente, mais amigo, mais confiante, mais descontraído que em dias anteriores e ouvimos “ferver” as piadas entre amigos e conhecidos a propósito de tendências mais ou menos evidentes e de situações que acabarão por ser regularizadas.
À noite, a animação nas ruas manteve-se por algumas horas, mas esfriou mais cedo que o usual, também por haverem encerrado durante todo o dia os cafés e os clubes.»(42)
Já no final, a crónica, da autoria do jornalista José Manuel Pereira, regularmente publicada na última página, sob o título Brisas do Guadiana, não podia ser mais elucidativa sobre o impacto que a revolução estava a ter no país vizinho, ainda a viver em ditadura:
«Nos dias seguintes, o pessoal da vizinha cidade espanhola de Aiamonte, cujo comércio depende essencialmente dos portugueses do lado de cá do Guadiana (há também muitos portugueses a residir no lado de lá), perguntava o que significava o sinal que viam através da TV (os dedos em forma de V de vitória) e as palavras que acompanhavam tal sinal (o “slogan” popular “o povo unido jamais será vencido”). Outros afirmam que os portugueses em geral estão com melhor cara (mais alegres e descontraídos) desde que eclodiu o movimento de 25 de Abril.»
Além de sedes de concelho, outras localidades algarvias, ainda que em número bastante menor, foram palco de manifestações de apoio à nova situação política: Armação de Pêra, S. Bartolomeu de Messines e S. Marcos da Serra, as três no concelho de Silves; Bordeira, no de Faro; Fuseta e Moncarapacho, no de Olhão; Cacela e Monte Gordo, no de Vila Real Santo António.
Ambas no dia 1.º de Maio, as de Armação de Pêra e da Fuseta foram as que mais atenção mereceram da imprensa. Na primeira, a população reuniu-se no Largo da Fortaleza, tendo depois percorrido as ruas da povoação, dando vivas e gritando palavras de ordem.(43) Foram oradores Luís Patrício Ricardo e António Joaquim Penisga da Silva. Na Fuseta, «depois de terem percorrido as principais ruas da localidade», «milhares de pessoas, especialmente da classe marítima», juntaram-se na Avenida do Parque, «empunhando bandeiras, estandartes e dísticos» de apoio ao Movimento das Forças Armadas». «Em tribuna improvisada, usaram da palavra» o advogado e candidato da CDE em 1969 Dr. Dias Costa, de Tavira; o comerciante e antigo preso político Joaquim Farracha, de Olhão; o estudante Manuel Martins Bom; o alfaiate Francisco Rodrigues Dias; o comerciante André Carlos; dois pescadores, Carlos Teixeira e Joaquim de Sousa; e o comerciante e autor da notícia, Reis de Andrade. Alvo de distinção especial, sob a forma de um convite para ali estarem presentes «numa sessão a efetuar brevemente», foram, no final, duas filhas ilustres da terra, Maria Barroso e Zélia Agostinho, mulheres respetivamente de Mário Soares e José Afonso.(44)
Também no 1.º de Maio, em S. Bartolomeu de Messines, «um cortejo percorreu as ruas desta vila», tendo depois, frente ao Cineteatro João de Deus, vários oradores usado da palavra.(45) Em Moncarapacho, os manifestantes reuniram-se no parque desportivo, localizado na periferia da aldeia, tendo a seguir, em cortejo, percorrido algumas ruas da mesma.
S. Marcos da Serra foi, por seu lado, a última localidade da província onde, no Largo recentemente rebatizado com o nome de 1.º de Maio, já no domingo dia 12 deste mês, se realizou uma ação deste tipo. Na manifestação, que reuniu «cerca de mil pessoas», usaram da palavra diversos oradores: os Drs. Bernardino Ramos, desta freguesia, Luís Catarino, de Portimão, Luís Filipe Madeira, de Loulé, e, «em nome das mulheres», «uma senhora de Portimão» (que, mais uma vez, a notícia não identifica).(46)
OS ORADORES E AS PALAVRAS DE ORDEM
Ao todo, foram noticiadas manifestações em doze dos dezasseis concelhos algarvios. Aljezur, Vila do Bispo e Lagoa, no Barlavento, e Alcoutim, no Sotavento, são os únicos concelhos sobre os quais, porventura pela localização periférica da maioria deles, não há notícias de manifestações na imprensa, o que obviamente não quer dizer que, pelo menos em alguns casos, elas não se tenham realizado.
Silves (cinco, duas na cidade, mais três em Armação de Pêra, S. Bartolomeu de Messines e S. Marcos da Serra), Faro (quatro, três na cidade e uma em Bordeira) e Olhão (também quatro, duas na vila, uma na Fuseta e outra em Moncarapacho) foram, por sua vez, os três concelhos onde há notícia de maior número de manifestações.
À altura a figura mais destacada da CDE no Algarve, o Dr. Luís Filipe Madeira foi o orador que interveio num número maior de manifestações: quatro ao todo (Loulé e Faro, no dia 27 de abril, Albufeira, no dia 1.º de Maio, S. Marcos da Serra, no dia 5 de maio). Pelo que é possível concluir de alguns pequenos excertos publicados na imprensa, as suas intervenções revelam dois níveis de preocupação: por um lado, como todos os outros oradores, o apoio à nova situação política emergente da revolução; por outro, o apelo ao civismo e ordem da população, no sentido de evitar situações de violência que pudessem ser aproveitadas pelas «forças mais reacionárias».(47)
Em regra figuras com notoriedade social nas localidades onde viviam, os oradores pertenciam, ainda que em proporções variáveis, a um de dois grupos: num caso, individualidades com passado antifascista conhecido, nomeadamente antigos presos políticos (casos, por exemplo, de João da Veiga, Manuel da Silva Lagos e Joaquim Farracha); noutro, pessoas originárias dos estratos médios da população, mas ainda assim tidas igualmente como desafetas ao regime anterior (caso, entre outros, do Dr. Vasco Gracias, do Dr. José Neves Júnior ou do Dr. Emílio Campos Coroa).
De um modo geral, as manifestações, mesmo as de 1.º de Maio, foram convocadas por estruturas da CDE, em muitos casos ainda embrionárias, ou individualidades desafetas ao anterior regime. Sem sindicatos independentes organizados, com os partidos ainda a emergir da clandestinidade ou a formar-se, além de uma população largamente despolitizada, as reivindicações laborais e políticas, habitualmente associadas à comemoração do Dia do Trabalhador, só muito pontualmente estiveram presentes nos discursos dos oradores, nas palavras de ordem gritadas pelos manifestantes ou nos dizeres dos seus cartazes e faixas.
De festa e regozijo pela conquista da liberdade – Viva a Liberdade e a Democracia, Viva Portugal, Abaixo o fascismo, O povo unido jamais será vencido – mais ocasionalmente contra a guerra colonial, as palavras de ordem amiúde gritadas durante as manifestações, realizadas na província, foram também, em simultâneo, de agradecimento às Forças Armadas, ao Movimento das Forças Armadas, à Junta de Salvação Nacional e ao seu Presidente, general António de Spínola. Vistos como um todo, independentemente do contributo efetivo de cada um deles, ou não, para o sucesso do movimento, que, como se sabe não foi generalizado, os militares beneficiaram nos meses iniciais da revolução de um estado de graça quase absoluto. Alcandorado à chefia da Junta de Salvação Nacional e do Estado, à revelia da vontade dos capitães do MFA, que pretendiam Costa Gomes, Spínola foi o militar que, em termos imediatos, mais beneficiou desse sentimento.
A COBERTURA DA IMPRENSA
Dos seis semanários que, na altura, se publicavam na província, o Jornal do Algarve foi aquele que melhor deu conta das mudanças trazidas pela revolução e da forma como a mesma foi vivida pelos algarvios.
Com a sua edição, saída dois dias depois da revolução, em grande parte já composta quando esta se deu – razão por que apenas lhe fez uma pequena referência na página 2 – o jornal só na semana seguinte, a 4 de maio, pôde abordar amplamente o assunto, dedicando-lhe a quase totalidade das suas páginas. À exceção de uma pequena notícia sobre a nomeação de um algarvio para o cargo de encarregado do Governo da Guiné, a primeira página foi completamente ocupada com artigos sobre o novo momento político vivido no país, todos de opinião e da autoria da redação ou de colaboradores habituais do jornal.
Ao cimo da página, a quatro colunas, sob o título “Liberdade Um Português recém-nascido que é preciso defender”, o jornal regozija-se com o triunfo do movimento militar, enquanto alerta para os perigos que espreitam a nova ordem política. À direita, encimado por uma fotografia de José Barão, sob o título “Evocando quem não viveu a alegria destas horas”, Torquato da Luz homenageia a memória do histórico jornalista que dezasseis anos antes tinha fundado o jornal e que, em luta contra a censura salazarista, pugnara por manter a sua independência em termos editoriais. Mais abaixo, na secção “Nota da redação”, o jornal reflete sobre as mudanças ocorridas no país e os novos caminhos que, «na encruzilhada da História há que saber escolher».(48)
Mais três artigos completam a primeira página: “Quando a Liberdade não é utopia”, “Agora com os olhos em nós”, de Mateus Boaventura, e “Sem ódios nem pressas Com uma só ambição – servir Portugal”, de Maria Carlota, uma das duas mulheres, juntamente com a olhanense Maria de Olhão, que na altura colaboravam no jornal.
Sem censura, os jornais ganham nas semanas seguintes uma dimensão nova, mais crítica, de denúncia de situações de injustiça e arbitrariedade antes vividas na região e que aquela não tinha permitido que fossem abordadas. Ao tempo jornalista profissional num vespertino de Lisboa ligado à antiga Oposição Democrática – o jornal República –, o jovem louletano Carlos Albino foi, de entre os colaboradores do Jornal do Algarve, aquele cujos escritos melhor corporizaram esse novo espírito. Da sua autoria, o texto “Peço aos corruptos que se retirem desta querida terra que venderam”, o primeiro de três que, na altura, publicou neste jornal, é disso um exemplo:
«[Os leitores do Jornal do Algarve] sabem como os fascistas boicotaram a vida associativa, intimidando e perseguindo os jovens de Olhão, Loulé (…); sabem como em Faro os governadores civis sistematicamente obedeciam dóceis aos cochichos ilegais emanados do governo fascista.
Proibiram conferências, sessões, tudo o que se referisse a uma crítica necessária à situação miserável em que o Algarve entretanto ia sendo lançado com a cumplicidade das direções reacionárias dos sindicatos que denunciavam sócios à pide, das associações dominadas pela Mocidade [Portuguesa] ou essa hedionda pandilha de bufos que nesta vida só esperavam pelo bom tacho e pelo chicote para massacrarem ainda mais as classes produtivas.
Em Loulé, os patrões faziam-se sócios da terrível ANP para verem facilitadas as suas “coisas” nas finanças, nos bancos, na Câmara… chegavam a dar dinheiro a essa terrível organização em quantidades que ultrapassavam as dezenas de contos, enquanto aos pobres à saída da missa atiravam uns tostões para salvarem as almas…
Era a corrupção instalada no Algarve. (…)
Foi a civilização do padrinho, (…)
A corrupção dominou a escola. As “cunhas” substituíram há muito o esforço intelectual dos jovens. Estes, sem entusiasmo e sem interesse por este País atiraram-se para os bailes, para o bilhar, para os cabarés e para o jogo, como última alternativa ao cadáver do Ensino que os fascistas queriam obrigar a cheirar. (…)»(49)
E, glosando uma conhecida quadra de António Aleixo – Goza mais um desgraçado/ num dia de felicidade/ do que qualquer abastado/ gozando uma eternidade – o jovem jornalista louletano que, na madrugada de 25 de Abril, tinha sido responsável pela transmissão do sinal radiofónico que deu início à revolução, ele próprio também poeta, concluía:
«Aleixo foi parar à prisão denunciado por um pide.
Quem foi o acusador de Aleixo?
É preciso defender o poeta desta maneira e não com lágrimas de olho cínico. …
Grande Aleixo do povo!
Foram os poemas desse livro escrito pelas tabernas e impresso na memória do povo, que ajudaram também a transformar este País.
A força da poesia de Aleixo tem a força destas armas que dominaram os corruptos.»
No seu conjunto, os artigos, escritos ainda a quente, com forte dose de emotividade, espelham a adesão dos seus autores à nova situação política e, ao mesmo tempo, as suas preocupações quanto à sua evolução futura.
Um espaço grande ocupou ainda, neste jornal, as notícias sobre manifestações, a atividade de partidos e sindicatos, como, de um modo geral, todas as que se relacionavam com a iniciativa das populações nos primeiros meses da revolução.
Dois outros semanários, comprometidos embora com o regime deposto, ocuparam grande parte dos seus números saídos depois da revolução com notícias das mudanças entretanto ocorridas no país: O Algarve e o Correio do Sul. De características mais noticiosas, com menos artigos de opinião, os dois privilegiaram nas suas edições as notícias sobre atos de carácter institucional envolvendo as novas autoridades, militares ou civis, quer de âmbito nacional, quer regional (caso, por exemplo, das tomadas de posse do novo Presidente da República, general António de Spínola, do novo Primeiro-Ministro, o farense Dr. Adelino da Palma Carlos, ou da nova Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Faro presidida pelo Dr. Almeida Carrapato). À exceção de uma notícia sobre a manifestação do 1.º de Maio em Faro na primeira página de O Algarve, a 5 de maio, o noticiário envolvendo movimentações populares nos primeiros dias da revolução foi, em grande parte, ignorado por estes jornais. Já outras notícias, dando conta das saudações enviadas à Junta de Salvação Nacional pela Câmara Municipal de Faro, pela Comissão Regional de Turismo ou por outros organismos cujos titulares, ligados ao regime anterior, à altura ainda estavam em funções, mereceriam de ambos os jornais um destaque bem maior.
Em suma: com maior ou menor sinceridade, mas sem alterar substancialmente a sua linha editorial, os dois jornais procuraram adaptar-se à nova situação política, transferindo para a nova Junta de Salvação Nacional e as novas autoridades os encómios que dantes dispensavam ao Governo deposto.
Os semanários Folha do Domingo, Comércio de Portimão e Povo Algarvio foram, por sua vez, aqueles que, ainda que por razões porventura diferentes, dedicaram menor espaço à cobertura noticiosa do 25 de Abril.
Órgão da diocese, cujos artigos se centravam maioritariamente em assuntos religiosos, a Folha do Domingo foi parca no espaço que dedicou à mudança de regime, não indo além de breves notícias sobre os principais acontecimentos ocorridos no país e na província. Ainda assim, o jornal não deixaria, num dos seus primeiros números, de lembrar algumas situações em que ele próprio tinha sido também vítima do lápis azul da censura.(50)
Parcos em notícias sobre o 25 de Abril foram também os jornais Comércio de Portimão e Povo Algarvio. Com uma orientação conservadora e um passado recente de compromisso com a ditadura, os dois semanários não disfarçaram a falta de entusiasmo com que no seu noticiário (predominantemente institucional) encararam a nova situação política. Os dois viriam logo no ano seguinte a interromper a sua publicação.
Um tanto mais pródigos no noticiário sobre o novo quadro político foram, em contrapartida, dois quinzenários, publicados, um, em Loulé e, o outro, em Olhão.
Sem fotografias, na sua edição de 1 de maio, a primeira saída depois do movimento militar, A Voz de Loulé escolheu para título, a toda a largura da primeira página e em letras garrafais: “25 de Abril de 1974 A Revolução da Esperança”. Mais abaixo, numa caixa, a meio da página, sob o título Loulé apoia o Movimento das Forças Armadas, o jornal, até aí com uma orientação alinhada com o regime deposto, noticiou a manifestação de apoio à nova situação política dias antes realizada nesta vila.
Propriedade do popular clube de Olhão, na altura com apenas duas páginas dedicadas a assuntos do concelho, da responsabilidade de alguns jovens que com ele colaboravam, O Sporting Olhanense não deixou por isso de se referir às mudanças ocorridas no país com alguns artigos e uma foto da manifestação do 1.º de Maio ocorrida nesta vila. Embora sem o carácter formal de notícia, um desses artigos tem a particularidade de nos informar sobre um episódio que, não obstante, outros jornais não registaram: a presença naquela manifestação de dois grupos que «gritavam intervaladamente, ora palavras de ordem da CDE, ora do MRPP, organização de tendência maoista» que, acrescenta o articulista (visivelmente simpatizante deste último), «de maneira alguma se identifica com os reformistas da CDE, organização a que os ex-fascistas se estão a encostar».(51) Por agora a dar os primeiros passos em termos de implantação, o MRPP teria em Olhão, nos meses seguintes, um dos seus principais bastiões a nível nacional e, seguramente, o mais forte no Algarve.
Como se viu ao longo deste estudo, a cobertura da imprensa sobre o 25 de Abril no Algarve foi, de um modo geral, desigual e pouco viva.
Muitas vezes sem correspondentes locais na província, os jornais vespertinos com maior tradição de independência em relação ao regime deposto – como o Diário de Lisboa ou a República – e mais direcionados para os grandes centros urbanos – como eram, além destes, também o Diário Popular e A Capital – dedicaram o grosso das suas páginas aos acontecimentos ocorridos em Lisboa, só muito raramente se ocupando de outras regiões. Foram, em contrapartida, os dois matutinos de maior circulação no sul do país, o Diário de Notícias e O Século, com mais correspondentes, mas mais comprometidos com o regime anterior, que mais espaço noticioso dedicaram a este assunto nas suas edições. O que não pôde inevitavelmente deixar de se refletir no tom baço e menos conforme com os novos tempos de alguns relatos.
Quanto à imprensa regional, e à exceção honrosa do Jornal do Algarve, a cobertura não foi, pelas razões já expostas, substancialmente diferente. Além de, na sua larga maioria, comprometidos no passado com a ditadura, os jornais algarvios não dispunham de corpos redatoriais profissionais, dependendo quase totalmente da boa vontade de uma rede maior ou menor de colaboradores externos que, gratuitamente, asseguravam grande parte dos artigos, em regra de opinião. As poucas notícias privilegiam os aspetos institucionais ligados ao poder político. Raras são também na imprensa regional as entrevistas com figuras relevantes, reportagens sobre aspetos da vida quotidiana das populações ou, caso mais flagrante, fotografias de acontecimentos de âmbito regional.
Seja como for, a revolução estava ainda no seu início. Nos meses seguintes, a favor ou contra, os jornais, nacionais ou regionais, não lhe seriam indiferentes.
NOTAS:
(1) Poeta, com vários livros publicados, e resistente antifascista (S. Bartolomeu de Messines, 1924 – Olhão, 2016). Na juventude, foi um destacado ativista e dirigente do MUD Juvenil no Algarve. Em 1947, participou na organização do Festival da Juventude de Bela Mandil, reprimido pela Polícia. Esteve preso quatro vezes por motivos políticos, tendo na última delas sido brutalmente espancado e corrido risco de vida.
(2) Diário de Notícias, 26/4/1974
(3) A Capital, 26/4/1974
(4) Diário de Notícias, 26/4/1974
(5) Os retransmissores da Fóia foram ocupados, às primeiras horas da manhã do dia 25 de Abril, por uma força militar do CICA 5, de Lagos, comandada pelo capitão José Castelo Glória Alves e da qual fazia também parte o capitão Filipe Ferreira Lopes. Os dois foram, com o major Carlos Leal Branco e o capitão miliciano Campinas, todos do CICA 5, os únicos oficiais de patente não inferior que, a nível do Algarve, estiveram envolvidos no movimento militar.
(6) O Século, 27/4/1974
(7) Diário de Notícias, 1/5/19748)
(8) Diário Popular, 27/4/1974
(9) A Capital, 27/4/1974
(10) Jornal do Algarve, 4/5/1974
(11) A Capital, 27/4/1974
(12) Diário de Notícias, 28/4/1974
(13) Jornal do Algarve, 4/5/1974
(14) Ibidem
(15) Diário de Notícias, 28/4/1974
(16) Jornal do Algarve, 4/5/1974
(17) O Século, 28/4/1974
(18) Ibidem
(19) Diário de Notícias, 29/4/1974
(20) O Século, 28/4/1974
(21) A Voz de Loulé, 1/5/1974
(22) Jornal d Algarve, 4/5/1974
(23) O Século, 29/4/1974
(24) Jornal do Algarve, 4/5/1974
(25) Ibidem
(26) Diário de Notícias, 1/5/1974
(27) Jornal do Algarve, 11/5/1974
(28) Diário de Notícias, 1/5/1974
(29) Ibidem
(30) Diário de Lisboa, 4/5/1974
(31) Jornal do Algarve, 11/5/1974
(32) Ibidem
(33) O Século, 3/5/1974
(34) Jornal do Algarve, 11/5/1974
(35) Diário de Notícias, 4/5/1974
(36) Jornal do Algarve, 11/5/1974
(37) Diário de Notícias, 3/5/1974
(38) O Século, 3/5/1974
(39) Ibidem
(40) Ibidem
(41) Diário de Notícias, 3/5/1974
(42) Jornal do Algarve, 11/5/1974
(43) O Século, 3/5/1974
(44) Jornal do Algarve, 18/5/1974
(45) O Século, 3/5/1974
(46) Jornal do Algarve, 18/5/1974
(47) Diário de Notícias, 3/5/1974
(48) Jornal do Algarve, 4/5/1974
(49) Idem, 11/5/1974
(50) Folha do Domingo, 4/5/1974
(51) O Sporting Olhanense, 23/5/1974
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A madrugada que eu esperava | O Algarve e o 25 de Abril – 50 Anos | Por Idalécio Soares