VIA DO INFANTE: DO BUZINÃO À BUZINADELA
O dia 12 de Novembro de 2004 é um marco histórico do Algarve, que assistiu à maior manifestação popular do povo algarvio deste século, em protesto contra a “anunciada intenção” do governo central de Lisboa de criar portagens na Via do Infante. Durante toda uma manhã, automóveis, camiões, bicicletas e tractores ocuparam a EN 125, desde Vila Real de Santo António e Lagos, confluindo para Albufeira. Filas de trânsito com largas dezenas de quilómetros bloquearam completamente a avenida principal da Região.
De nada valeu o dispositivo montado pela Brigada de Trânsito da GNR, que se multiplicou em acções de fiscalização, distribuindo multas a rodos, numa tentativa falhada de reter a enxurrada de gente montada em veículos ligeiros ou pesados, para quem a Via do Infante se constituíra uma tábua de salvação de quem trabalha e precisa de andar na estrada. Foi uma coisa nunca vista, não se sabe se voltará a acontecer. Portagens, para quem não as pagava, significavam aumento de custos, perda de competitividade económica, aumento da sinistralidade na EN 125, tratamento igual para estradas de origem e financiamento diferentes.
“Os autarcas calaram-se, os empresários adaptaram-se, os partidos políticos disputam as ossadas da culpa solteira. E o povo paga”
No dia 8 de Dezembro de 2022, conforme anunciaram vários jornais do Algarve, ter-se-á realizado uma marcha lenta de protesto contra as portagens entre a Luz de Tavira e Tavira, convocada pela autodenominada Comissão de Utentes da Via do Infante (CUVI). À falta de notícias sobre o sucesso do evento, será de presumir que tenha tido o mesmo impacto de iniciativas similares da mesma entidade, ou seja, nenhum. À distância de quase duas décadas, entre 2004 e 2022, há alguns pontos que marcam a diferença entre um buzinão gigantesco e uma buzinadela minúscula. Então, foi uma verdadeira aliança entre a sociedade civil algarvia de cidadãos desfiliados de qualquer obediência ou culto, as cinco maiores associações empresariais e o seu universo de empresas, empresários e funcionários e, finalmente, o poder político regional representado por autarcas de todos os municípios do Algarve e alguns deputados. Esta consonância nunca mais se repetiu.
A contestação tem sido corporizada por um grupo de activistas de parca representatividade, que faz prova de vida de vez em quando. Durante o tempo da troika, entreteve-se em teatrinhos à frente da casa de férias de Passos Coelho ou às portas da Festa do Pontal, mas enquanto o governo da Geringonça durou, perdeu praticamente o pio, o que só acentuou o seu descrédito. Não vale muito a pena olhar para a questão das portagens da Via do Infante com o mesmo olhar do passado. Pela sua história, passaram até hoje sete primeiros-ministros. Uns mais, outros menos, todos têm responsabilidade na matéria. Goste-se ou não dele, só Cavaco Silva sai ileso, foi quem lançou a construção da Via do Infante e da Ponte Internacional sobre o Guadiana, limpas de franquia. Os autarcas calaram-se, os empresários adaptaram-se, os partidos políticos disputam as ossadas da culpa solteira. E o povo paga.
A 8 de Novembro de 2011, quando se activou a cobrança pelas portagens electrónicas, passavam diariamente pela Via do Infante 10.600 viaturas. Um ano depois, a quebra tinha sido de quase metade. Em 2018, o tráfego já tinha recuperado o fôlego antigo. Parece que alguém na altura terá antecipado o grito que António Costa agora celebrizou: “Habituem-se!” E habituaram-se mesmo. É a velha história do “primeiro estranha-se, depois entranha-se”…
DE LAGOS, UM EXEMPLO
Há situações em que o bem público se deve sobrepor aos interesses privados, sem que isso tenha de significar usurpação, esbulho ou autêntico roubo. Já passou o tempo da febre ideológica do PREC, em que se nacionalizou uma economia quase inteira, com as consequências nefastas que se conhecem e levaram décadas a reparar. Hoje, o primeiro passo na transição de imóveis de interesse e localização estratégica da esfera privada para a posse pública, tem de passar por um processo de negociação, sem ceder à especulação, mas não se afastando muito da referência do mercado. Porém, falhada a negociação entre proprietários e entidades públicas adquirentes, o interesse da comunidade tem de prevalecer e avançar sem expedientes dilatórios. Infelizmente, muitos autarcas perdem oportunidades irrecuperáveis para instalar infraestruturas e serviços em zonas chave das urbes que administram, por falta de visão, e por falta de coragem. Param ao primeiro obstáculo que encontram. Desconhecem expressões como posse administrativa, declaração de utilidade pública, carácter de urgência e, finalmente, expropriação, tida erradamente como palavra maldita.
O fundamento da expropriação só pode ser a função social da propriedade. Não pode significar nem abuso de poder, nem exercício discricionário da administração pública. E o “quantum” da indemnização tem de corresponder a uma compensação justa, para não provocar uma situação de desigualdade na comparação com os proprietários não expropriados. De Lagos, vem um exemplo, com a anunciada intenção de expropriar quatro imóveis em locais estratégicos, para fins de interesse social e público, depois de falhado o processo de negociação.
Ampliar instalações municipais e o parque de arrendamento apoiado para 50 famílias e autoconstrução, são desígnios meritórios. Saúda-se a coragem de avançar. Espera-se que a indemnização seja equilibrada.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico