Os Armários Vazios é o mais recente título de Annie Ernaux a integrar o catálogo da chancela Livros do Brasil. Publicado pela primeira vez em Portugal representa a estreia literária da autora vencedora do Nobel em 2022, tendo este livro sido originalmente publicado justamente há 50 anos, em 1974.
«Um monólogo interior vivo, denso, veemente. Um romance de formação, ou antes de deformação, vindo de uma desconhecida», podia ler-se no ano da sua publicação no Le Monde, enaltecendo-o como a «revelação da primavera».
Os Armários Vazios chega-nos com tradução de Tânia Ganho. Uma obra peculiar que representa o primeiro romance publicado por Annie Ernaux, mas onde surgem em embrião os grandes temas que compõem a sua obra. Temas esses que a escritora francesa trabalhará exaustivamente, posteriormente como etnóloga de si mesma, e que fazem luz sobre Denise Lesur – jovem de vinte anos, filha de pais proletários, a primeira da sua família a frequentar o ensino superior – como sendo, na verdade, um alter ego da autora. Não é levar longe demais a assunção de que a personagem de Denise se (con)funde com a da autora: “Narro-me” (p. 45).
Estes são os temas usuais à autora, que surgirão ainda mais tarde, dissecados ao pormenor, em testemunhos pungentes assumidos na primeira pessoa, em obras como A Vergonha (fala-se aqui dos pais de classe baixa, «feios, miseráveis, labregos»); Memória de Rapariga, onde evoca os tempos do colégio interno; O Acontecimento, onde relembra uma gravidez precoce e indesejada.
Naquele que é o seu primeiro, é curioso notar como a prosa aqui é mais torrentosa, escrita de rajada, com frases curtas, incisivas – como é usual aos testemunhos de Ernaux -, mas numa prosa mais burilada, mais trabalhada. Ao procurar narrar-se assumidamente a si mesma, nos ensaios que resultam desse trabalho de ser etnóloga de si própria, parece assim corresponder um despojamento da linguagem, que se tornará mais seca e desapiedada, crua e chã. Na prosa densa e acelerada, o próprio tempo se subverte, entre cá e lá, entre a mulher que desejou em tempos ser professora e lamentou não haver escritores-homens que efetivamente escrevessem sobre o que a uma mulher interessa, como é o caso de uma rapariga que dá por si a visitar uma fazedora de anjos. Pois esta jovem apenas conhece autores que escrevem sobre a “velha tia que bebe chá e come madalenas” (p. 91).
É difícil desenlaçar a voz da mulher que narra a sua infância da criança, que vive os tempos do colégio entre os oito e os doze anos (passar de casa ao colégio é afinal passar de um mundo a outro), onde descobre a vergonha que tem dos pais, e depois a adolescência, a descoberta da sexualidade, a gravidez indesejada. Uma gravidez que – assim se pode interpretar – oscila entre a mácula de uma condição social a que ela nunca pode verdadeiramente fugir e, por outro lado, uma vingança sobre o legado que os pais lhe impuseram. “Estrangeira aos meus pais, ao meu meio” (p. 106), Denise/Annie oscila entre a gratidão dos pais que se sacrificaram por ela – a primeira a continuar os estudos e até mesmo a entrar na universidade – e o ódio visceral, acentuado pela vergonha de quem se vê como devedora e continuação deles.
O que aqui é novo, na obra da autora, é o regresso às considerações sobre a linguagem, agora de modo mais atento, quando confronta a linguagem de casa (que também servia de mercearia e taberna), popular, brejeira, gritada, com a do colégio: “Nem sequer era a mesma língua. (…) Existe um mundo entre elas. (…) É pior que uma língua estrangeira, não percebemos nada em turco, em alemão, assunto encerrado, não se pensa mais nisso. Neste caso, eu percebia quase tudo o que a professora dizia, mas não teria sido capaz de usar aquelas palavras por mim própria, os meus pais também não, a prova é que eu nunca as tinha ouvido em casa.” (p. 48)
Em casa falava-se aliás de facto outra língua, o patuá – refere-se a avó que só sabia falar patuá.
Annie Ernaux nasceu em Lillebonne, na Normandia, em 1940, e estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, sendo formada em Letras Modernas. É atualmente uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes. Galardoada com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017), o Prémio Formentor de las Letras (2019) e o Prémio Prince Pierre do Mónaco (2021) pelo conjunto da sua obra, destacam-se os seus livros Um Lugar ao Sol (1984), vencedor do Prémio Renaudot, e Os Anos (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional. Em 2022, Annie Ernaux foi distinguida com o Prémio Nobel de Literatura.
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