PRIVATIZAÇÃO DAS PRAIAS EM CURSO
É inegável o contributo que os chamados POOC’s (Planos de Ordenamento da Orla Litoral) deram para a melhoria da qualidade das praias portuguesas nas últimas duas décadas. Ficaram mais limpas, com melhores apoios e acessos, e mais seguras ao nível da vigilância, das intervenções de salvamento e primeiros socorros, reduzindo substancialmente o número de mortes por afogamento.
No Algarve, temos ainda em vigor a primeira geração destes instrumentos de planeamento: Burgau-Vilamoura (desde 1999) e Vilamoura-Vila Real de Santo António (desde 2005/2006). As praias são, no ordenamento jurídico português, um bem público de livre acesso e usufruição para toda a população portuguesa. Aliás, Portugal tem sido ao nível da União Europeia um dos países com menos entraves nesse aspecto. E seria bom que assim continuasse a ser. Porém, são preocupantes os sinais crescentes de um processo de privatização encapotada em curso, a crescer em todo o País e com particular incidência no Algarve, que tendem a colocar em causa esse direito universal e há muito tempo adquirido pelos portugueses.
Os apetites vorazes que atacam hoje em dia o nosso litoral, vão estender-se também às praias. É muito milhão
Ninguém lhe chama privatizar praias, mas na prática produz um efeito desincentivador semelhante que discrimina vastos sectores da população de menores rendimentos. Desde logo, ao nível da expansão desmesurada das áreas de concessão, duplicadas a propósito do combate à Covid-19 e não repostas na situação anterior, reduzindo cada vez mais as zonas não concessionadas para todos os que não querem ou não podem pagar os preços cobrados para o aluguer de toldos, colmos e barracas. Confinados, em suma. Numa outra vertente, ao nível do estacionamento, proliferam os espaços pagos com taxas escandalosamente proibitivas, remetendo os banhistas menos abonados para estacionar as suas viaturas a milhas das praias, o que é uma clara desvantagem e uma discriminação social. Quem tem dinheiro, tem tudo, quem não tem, que fique em casa.
As autarquias são hoje as entidades responsáveis pela gestão das áreas balneares, e têm a obrigação dupla de contribuir para o desenvolvimento económico dos seus concelhos, mas também de garantir a todos os seus munícipes os direitos de usufruir daquilo que lhes pertence, ou seja, o espaço público. Ao lado de um estacionamento privado, fechado, vigiado, e com sombra (o que naturalmente vale um preço), tem de haver, deve haver, um estacionamento livre de cobrança. Há que ter um sentido de equilíbrio.
Os apetites vorazes que atacam hoje em dia o nosso litoral, vão estender-se também às praias. É muito milhão. O que se passa na Herdade da Comenda, na Arrábida, é um escândalo e um desaforo. Na Praia da Aberta Nova, em Grândola, idem aspas. Em Vilamoura, vedou-se uma área que servia de estacionamento livre, próximo da Praia da Falésia. Acentuam-se as pressões sobre os gabinetes encarregues da nova geração de POOC’s. Alerta máximo. Quem nos acode? Quem defende os interesses e os direitos dos munícipes, cidadãos e eleitores? Os autarcas? Os deputados?
A VOLTA DA VOLTA
Durou cinco anos o jejum velocipédico da Volta a Portugal no Algarve. Finalmente, e só depois de a Câmara Municipal de Loulé ter aberto a bolsa com 85.000 euros, a sociedade comercial que explora o maior acontecimento desportivo extra-futebol que se realiza anualmente em Portugal, lá se decidiu a pôr termo a essa vergonha de uma Meia-Volta que ignorava o território ao sul de Lisboa, o tal deserto que o ministro Mário Lino de má memória celebrizou com um “jámé”, a propósito da localização de um novo aeroporto que continua por achar. Lá concederam uma etapazinha, Sines-Loulé, por sinal a mais longa e enfadonha que se poderia conceber, horas a fio por estradas desertas de povo e, azar dos Távoras, logo no dia mais quente das nossas vidas até à data.
Poucos foram os que, arriscando fritar o cérebro, trocaram o acompanhamento da prova no conforto do sofá pelo aplauso ao vivo à passagem daqueles heróis. Se, em circunstâncias normais, o ciclismo já é um desporto de exigência física extrema, imagina-se a tortura de dar ao pedal sob um sol inclemente parecido ao do Vale da Morte, na Califórnia.
Uma “estopada”, como definiu um director desportivo de uma conhecida equipa, ter que vir ao Algarve, terminar a etapa, e ter que rumar de imediato para Estremoz, sem tempo para recuperar, nem fazer despesa com dormida, comida, ou sequer uma laranjada. Sim, sabemos que a Volta a Portugal já não é o que era, a internacionalização obrigou a comprimir os dias da competição. E o calendário cai em cima da época alta do turismo algarvio, com todos os inconvenientes da carestia de vida, e da perturbação do trânsito em tempo de congestionamento. Mas, só o simples facto de aqui perdurarem dois baluartes do ciclismo nacional, o Louletano, e o Tavira que até detém o recorde de equipa mais antiga do mundo em actividade, exige respeito para com a Região.
Se não puder ser todos os anos, que se torne bienal, trienal se quiserem, esta visita obrigatória e desejada. Só foi pena que, depois de 160 quilómetros em fuga, um moço que representa a equipa de Loulé, tenha soçobrado quase à vista da meta, e falhado o objectivo de proporcionar uma vitória aos adeptos da casa. Rebentou na subida da Cruz da Assumada. Uma autêntica cruz, num assomo de calor.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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