Já alguma vez se sentiu cansado apesar de dormir bem e de se alimentar de uma forma correcta? Esta pergunta tão banal, numa coluna de filosofia pode parecer estranha. Porém, nos tempos em que a filosofia não vivia escondida por trás dos muros da academia, é muito provável que um filósofo ― fosse ele grego ou indiano ― lhe respondesse o seguinte: trata-se de um desequilíbrio do elemento Terra.
Todos nós conseguimos identificar os 5 elementos ao olharmos para o mundo, e também não é difícil reconhecermos em nós a sua presença. A ciência já nos mostrou, por exemplo, que o nosso corpo é constituído por cerca de 70% de água e que, entre os electrões que formam os átomos de tudo o que existe, há imenso espaço. O problema reside em que saber estas e muitas outras coisas ― nunca foi tão fácil acumular conhecimento como nos dias de hoje ― não nos parece servir de muito. Se temos uma dor um sofrimento, vamos à farmácia, compramos suplementos alimentares, analgésicos ou ansiolíticos, e não pensamos mais no assunto. Justamente, este não pensar é o nosso maior problema. A dor no corpo é sempre um alerta de que algo não está bem. A dor requer a nossa atenção para que possamos observar com acuidade o que se passa e, caso seja necessário, corrijamos o curso da nossa ação.
Permitam-me que viaje para a Jónia do séc. VI a.C e vos apresente Tales de Mileto: tradicionalmente considerado o mais antigo físico grego ou investigador da natureza. Tales observou que todo o alimento é húmido e que o embrião de qualquer ser também tem uma natureza húmida. Ora a água é o princípio de todas as coisas húmidas. Princípio é aqui entendido no sentido da archè aristotélica: matéria original constitutiva das coisas, que persiste como substrato e na qual elas se convertem ao perecerem. No mesmo século, Anaxímenes, também de Mileto, estabelece o ar como substância originadora e forma básica da matéria, que muda por condensação e rarefacção. O ar, ao tornar-se mais subtil transforma-se em fogo, ao tornar-se mais denso transforma-se em vento. Sempre num crescendo de densidade vai-se transformando em nuvem, depois em água, seguidamente em terra, e por fim em pedras. O ar está em movimento perpétuo e é através dele que a mudança acontece. Anaxímenes afirma também que o ar circunda o mundo inteiro e que a nossa alma ― sendo sopro ― nos mantém. Quando a alma-vida parte, o corpo desintegra-se.
Já no séc. V a.C Heraclito de Éfeso considerou que era o fogo a forma arquetípica da matéria. O fogo não seria uma substância originária, ao modo de como Tales considerou ser a água e Anaxímenes o ar. O fogo é aqui entendido como sendo uma parte do cosmos, em pé de igualdade com a água e com a terra. O fogo cósmico, puro, foi identificado com o aither: substância ígnea e brilhante que enche o céu resplandecente e circunda o mundo. Este aither divino era também o lugar das almas. O fogo era o centro motor das mudanças cosmológicas, mas o logos ― neste caso entendido como proporção ― permaneceria o mesmo. Persistia uma regularidade na mudança. Segundo Heraclito a alma também é feita de fogo ― e não um sopro, ou alento, como pensava Anaxímenes ― ela é um fragmento do fogo cósmico, uma centelha de estrela.
Estas observações sobre o mundo exterior e das suas correspondências com o corpo humano orientaram o sistema educativo grego que, sob o lema “mente sã em corpo são”, contemplava não apenas o intelecto ― através do ensino da matemática e das letras ― mas também a ginástica para o corpo e a música para o espírito que se queria sensível à beleza, à harmonia e ao ritmo. Apesar de tudo isto, não se conhece na Antiguidade Clássica um sistema educativo orientado especificamente para o equilíbrio dos 5 elementos. O sábio Heraclito, que sofreu de hidropisia, foi capaz de identificar o seu problema como um excesso de água no organismo, mas não soube como utilizar o elemento fogo para se reequilibrar. Quando o desequilíbrio entre os elementos atinge grandes proporções origina-se a doença e, se se agrava, falecemos. O Livro Tibetano do Mortos explica, em detalhe, este processo de desintegração do corpo nos cinco elementos.
Nos dias de hoje, prestar atenção aos 5 elementos será algo mais do que uma curiosidade?
B.K.S. Iyengar (1918-2014), um dos mais respeitados mestres de Hatha Yoga (yoga físico) que o mundo já conheceu, considera o corpo humano como uma miniatura do universo. No seu livro Light on Yoga, explica o seguinte: “a palavra hatha é um composto das sílabas ha, que significa sol, e tha, que significa lua. As energias solar e lunar fluem no nosso corpo a partir dos dois canais energéticos: a Pingala nadi, que tem origem na narina direita e corresponde ao canal solar e a Ida nadi, que tem origem na narina esquerda e corresponde ao canal lunar. Ambos canais se dirigem para a base da coluna vertebral. Entre elas existe um canal de fogo ― Susuma nadi ― por onde flui a energia do sistema nervoso. Pingala e Ida intersectam Susuma em diversos pontos ao longo da coluna vertebral. Estas junções são denominadas chacras, ou rodas energéticas que regulam o nosso corpo e mente.”
Cada um destes chacras está também relacionado com um elemento, com uma cor, com uma glândula, com um sentido e com uma nota musical. Por exemplo, Muladhara, o chacra da raiz, é de cor vermelha e corresponde ao elemento Terra ― prithvi, Terra-Mãe ― que se caracteriza pela rigidez, firmeza e solidez. Está localizado no períneo, entre os genitais e o ânus, e diz respeito aos ossos, músculos, tendões, ao sistema eliminatório, e ao sistema linfático. Corresponde também ao sentido do olfacto e à nota musical Dó. Este primeiro chacra diz respeito à nossa relação com a gravidade, com o chão, com as nossas raízes e consciência do corpo. Psicologicamente, é o chacra da estabilidade e segurança. Corresponde ao aspecto material da vida, à sobrevivência e conexão com o mundo e, por outro lado, é o chacra da relação com a mãe e com a mulher em geral.
O sentimento de cansaço, a que nos referimos no princípio deste artigo, poderia sugerir a reflexão sobre tudo aquilo que diz respeito ao primeiro chacra. Poderíamos perguntar-nos como está a nossa relação com o trabalho, com o dinheiro, com a mãe e com a mulher em geral. Estão todos estes aspectos em harmonia? Quando nos sentimos cansados isso pode derivar do facto de fazermos demasiadas coisas que não nos agradam, de levarmos uma vida que não nos nutre, como a Terra-Mãe deveria nutrir. O corpo mostra-nos, fala connosco, para que possamos corrigir o curso da acção. Contudo, normalmente reagimos tomando mais café, e deixando arrastar e agravar a situação.
De acordo com a mitologia Hindu, toda a prática de yoga consiste em despertar a Kundalini, a serpente que vive enroscada em volta do falo de Xiva ― deus criador do yoga. No nosso corpo a serpente repousa adormecida no primeiro chacra, na base da coluna vertebral. É preciso acordá-la para que a energia comece a fluir pelo canal energético principal ― Susuma nadi ― de chacra em chacra, até que Xiva se una com a sua esposa ― a deusa Sakti ― no sétimo chacra no topo da cabeça. O filósofo português José Gil, no seu livro Metamorfoses do Corpo, esclarece: “Sakti é o princípio de toda a energia cósmica activa, móbil, enquanto Xiva constitui o princípio ‘macho’ da potência, impassível e imóbil, ao qual corresponde a luminosidade da consciência transcendente. Unir Sakti, e Xiva, em nós é conseguir a Libertação, no grau supremo de consciência e de conhecimento.”
No seu livro Variations Sauvages a pianista Hélène Grimaud afirma o seguinte: “O corpo condiciona o raciocínio. Desfazer-se dos hábitos quotidianos do corpo é dar-se a possibilidade de um outro modo de pensar.” É disto, precisamente, que se trata. A cada chacra correspondem posturas de yoga ― asanas ― e exercícios respiratórios específicos ― pranayama. Com a utilização não apenas do tapete no solo, mas também do tecido suspenso, a prática de yoga relacionada com os 5 elementos intensifica-se de uma forma exponencial. É possível recriar movimentos aquáticos ou voadores com correcção e beleza. Pretende-se equilibrar os chacras, propiciando saúde física e mental, e religar a nossa existência particular com o cosmos universal.
Café Filosófico: 18 de Agosto de 2022, às 18:30 no AP Maria Nova Lounge Hotel
Inscrições: [email protected]
A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa.