POR UM PUNHADO DE ALFARROBAS
Durou pouco a febre do ouro negro algarvio. Duas épocas, se tanto. Não, não se trata do petróleo que a Repsol e a Partex tanto cobiçaram extrair ao largo da costa do Algarve, “off shore” para ser mais fino, e que os algarvios lutaram e conseguiram repelir. Estamos a falar de alfarrobas, esse fruto alongado e seco multiusos de uma árvore imponente, frondosa e bela, resiliente como soe agora dizer-se. Sobrevive à míngua de água, não carece de cuidados extraordinários, e produz que se farta. Uma generosidade sem paralelo.
Qual laranja, qual abacate! O mal da alfarrobeira, menosprezada e destruída durante mais de meio século pelos avanços da urbanização, pela desertificação do meio rural, pela estrutura de minifúndio das propriedades do Algarve que não permite grandes pomares em larga escala, foi que o preço que o mercado pagava não passava da cepa torta, uns humildes dobrões que não chegavam para cobrir o arado nas terras, nem a mão de obra do varejo e da apanha de traseiro ao alto e costas dobradas debaixo de sol inclemente. Por isso, foi sendo abandonada, ignorada, deixada ao abandono. Já não compensava o esforço de ninguém. Eis que, por razões que ainda hoje estão por explicar, que vão do delírio às teorias da conspiração, que metem o Rei Mohammed de Marrocos ao barulho, ou medicamentos para a Covid, o preço disparou para lá de qualquer lógica ou raciocínio, ultrapassando os 50 euros por arroba, algo nunca visto, pensado ou imaginado, nem sequer nos melhores sonhos dos pais e avós dos donos das terras abandonadas.
O processo de certificação da alfarroba está a avançar, é bom para a valorização do produto, mas não traz solução para a roubalheira
Como todos os movimentos humanos atraídos e mobilizados sempre que brilha o ouro da moeda e cheira a dinheiro, foi uma corrida de volta à apanha da alfarroba, um maná inesperado em tempos de crise, um reforço de orçamentos caseiros. De repente, começou-se a limpar terras do mato e do restolho e, imagine-se, plantaram-se alfarrobeiras novinhas em folha aos milhares, tratadas com um carinho como não se via há muito, regadinhas com água como quem dá biberão a um bebé, com desejos de crescimento rápido e colheita com pressa, que a carteira urge. Até Câmaras Municipais começaram a distribuir de borla pezinhos de alfarrobeira aos seus munícipes no âmbito do reflorestamento da região. E subsídios oficiais, com selo de Bruxelas, foram disponibilizados como é inevitável nestas situações. Havia que aproveitar a onda. Como sempre acontece onde desponta uma actividade lucrativa, o crime disparou em paralelo.
O roubo generalizado de alfarrobas foi notícia de telejornal, palco de manifestação dos produtores em Loulé, organizados pela AGRUPA de Horácio Piedade, com reaparição discursiva do agora grande agricultor Macário Correia, a apelar à revolta do povo humilde e trabalhador, saqueado à vista de toda a gente. Na altura, para impedir o prometido corte da EN 125 em pleno mês de Agosto, a Ministra da Agricultura Maria do Céu Antunes de seu nome, veio ao Algarve reunir com as forças em parada e prometer uma legislação que pusesse ordem na casa e um termo ao roubo do precioso fruto. Acusava-se a comunidade cigana, no que parecia uma evidência das operações da GNR, embora em nome do antirracismo seja hoje proibido fazer tal menção. Aliás, diga-se em abono da verdade, que houve muitos vizinhos que também aproveitaram para rapinar a colheita do lado em noites de lua cheia… e o cigano é que paga! Entretanto, passou um ano, e tudo continua na mesma, como a lesma. A Ministra, esse modelo de competência do mostruário governamental, lá continua plantada no seu gabinete. A legislação prometida ficou na gaveta. O processo de certificação da alfarroba está a avançar, é bom para a valorização do produto, mas não traz solução para a roubalheira. Parece que se está por aí a preparar uma plataforma de georreferenciação da origem das colheitas. Já vem tarde para a presente temporada, se vier.
O filme do ano passado já está em exibição, com uma alteração fundamental: o preço caiu abaixo dos 10 euros por arroba. Cinco vezes menos do que o termómetro assinalava no pico da febre. Os ímpetos produtivos tiveram um abalo. Alto, e pára o baile! O eldorado da alfarroba algarvia voltou à morrinha habitual. Muitos se interrogam: será que compensa? O tempo o dirá. Dificilmente voltará o tempo em que a Região produziu 41.000 toneladas de alfarroba em 1971, conforme informava o relatório do Grémio dos Exportadores de Frutos Secos e Produtos Hortícolas do Algarve da altura. Ao preço excepcional de há dois anos, estar-se-ia a falar de uma produção global de elevado valor: 130 milhões de euros! Um terço era exportado para o exterior, com a Suécia, os EUA, a Irlanda, o Canadá à cabeça. A “Bolsa de Faro” era famosa. Teófilo Fontaínhas Neto e Ramiro da Graça Cabrita lideravam dois grupos empresariais concorrentes e dominantes no sector. O triturado de alfarroba era essencialmente direccionado para a alimentação do gado. As gomas da grainha tinham aplicação nas indústrias têxtil, alimentar, cosméticos, papel, mineira e até de explosivos (imagine-se!).
Hoje, tornou-se vulgar produzir pão e doçaria de alfarroba. Provavelmente, o tempo não voltará para trás, como dizia a canção. Mas o nosso reconhecimento aos Fenícios será eterno, quando trouxeram para o Algarve essa árvore originária do antigo Iraque, que dava pelo nome de “al Harrubã”.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia