O contrário de nada, de Tess Gunty, foi recentemente publicado pela Alfaguarda, com tradução de Eugénia Antunes. E não resisti a passá-lo à frente na lista de leituras especialmente quando comecei a ver a enchente de prémios com que tem sido distinguido. Este é um romance de estreia literária que conquistou o mundo literário ao vencer o National Book Award em 2022. Recebeu também o Barnes and Noble Discover Prize e o VCU Cabell First Novelist Award. Foi ainda finalista do National Book Critics Circle Award, do Mark Twain American Voice in Literature Award e do British Book Award for Debut Fiction. Incluído pela New Yorker na sua lista de doze Leituras Essenciais, este romance arrebatou ainda a distinção de Melhor Livro do Ano em meios de comunicação como o The New York Times, TIME, Literary Hub, Chicago Tribune, Kirkus, NPR, Oprah Daily e People.
Logo nas primeiras linhas, numa prosa pujante, numa torrente acelerada, sentimos a originalidade desta voz literária.
«Faca, algodão, casco, lixívia, dor, pelo, beatitude: enquanto sai de si mesma, Blandine é tudo isto. É cada morador do seu prédio de apartamentos. É lixo e querubim, um chinelo no leito do oceano, o fato-macaco cor de laranja do pai, uma escova a passar pelo cabelo da mãe. […] Um núcleo dentro do homem que lhe roubou o corpo quando ela tinha catorze anos, um par de óculos vermelhos na cara da sua bibliotecária preferida, um rabanete arrancado de um canteiro. Não é ninguém.»
Nas páginas seguintes somos introduzidos num prédio, com breves instantâneos do quotidiano em diversos apartamentos na casa de diferentes moradores, no preciso momento em que um crime parece estar a ocorrer. Não só passamos vertiginosamente para o interior do C12, do C10, do C8, como também somos confrontados com a enchente de imagens que desfilam num ecrã televisivo, assim como as redes sociais consultadas em simultâneo nos ecrãs dos telefones dos moradores.
Blandine, uma jovem bastante peculiar, está no centro de diversas personagens estranhas, muitas delas moradoras no seu prédio: uma jovem mãe com um segredo que olha para o seu bebé recém-nascido como uma estranha ameaça; uma mulher, funcionária da “Descansa em Paz” cujo trabalho consiste em filtrar comentários ofensivos ou desadequados feitos num redator de epitáfios online; uma actriz que morre aos 80 anos numa ilha que é um reduto de preguiças em vias de extinção; uma mulher que trava uma guerra solitária contra ratos; e três rapazes enfeitiçados pela mesma rapariga.
“Sou demasiado fraca para isso. Quero dizer, toda a gente o é, mas eu sou especialmente suscetível às falsas recompensas que as redes prometem (…). Estão feitas para nos viciarem, para se aproveitarem das nossas inseguranças e as usarem para nos fazerem ficar presos a elas. Exploram a solidão de toda a gente com promessas de comunidade, aprovação, amizade. (…) E, para cúmulo, transformam o isolamento de uma pessoa numa arma, convencem cada utilizador de que é uma celebridade menor, obrigando-o dessa maneira a ser o curador de uma amostra artificial e cintilante das suas melhores experiências, exigindo uma atuação social sem tréguas que nada tem que ver com a sua vida interior, o que intensifica o seu narcisismo, multiplica a sua ansiedade e estreita a sua mundivisão. Tudo isto ao mesmo tempo que o mercantiliza, recolhe os seus dados e os vende a empresas perversas” (p. 226)
A prosa é irreverente e mordaz, dissecando a América contemporânea, sim, mas também o mundo atual em geral, numa narrativa que versa a solidão e a liberdade, que dá conta de uma “internet enervada”, reflexo de um mundo à beira de um ataque de nervos, e que, na melhor das hipóteses, procura demonstrar como todos nós estamos interrelacionados e somos interdependentes…
“Como é habitual, os predadores semeiam a destruição na internet. Os predadores são as únicas pessoas que existem. Se tivesse de resumir o enredo da vida contemporânea, a mãe diria: são todos a castigar-se uns aos outros por coisas que não fizeram.” (p. 17)
Não só passamos de uma personagem para outra, como ao longo dos vários breves capítulos somos por vezes confrontados com registos diferentes de escrita – da notícia ao obituário. No caso de uma única personagem encontramos narração na primeira pessoa.
Tess Gunty nasceu em 1993, em South Bend, Indiana, e vive em Los Angeles. Estudou Inglês e Escrita Criativa na University of Notre Dame e na New York University. O seu trabalho tem sido publicado em prestigiadas revistas literárias norte-americanas. O contrário de nada é o seu romance de estreia, distinguido em 2022 com o National Book Award, um dos mais relevantes prémios literários da atualidade. Tess Gunty tornou-se, assim, na mais jovem escritora a receber este galardão desde 1960, ano em que foi atribuído a Philip Roth.
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