POR DETRÁS DAS MOITAS
Dava para fazer um concurso de fotografia, com direito a prémios especiais de desleixo, incompetência e absurdos vários. Sinais de trânsito, placas multidireccionais de indicação rodoviária, outdoors camarários.
Parece mentira que, com tantos funcionários e dirigentes das autarquias e da Infraestruturas de Portugal (antiga Junta Autónoma de Estradas) a circular por aí, ninguém parece notar, ninguém se incomoda, ninguém se dá ao trabalho de cortar arbustos, moitas, árvores, que crescem à frente de informação que interessa ao público, e que assim fica escondida pela ordem natural da vegetação. Tanta insensibilidade. Uma cegueira geral.
Trata-se de doença antiga, a habituação do olhar. Ao primeiro dia nota-se o buraco, o monte de pedras, o lixo e a sujidade. Ao segundo dia, já se olha de raspão. Ao terceiro dia já faz parte da paisagem, é mobília, decoração, de certa maneira, família.
À PUNHADA
Não é verdadeira a afirmação de que “só os burros é que não mudam”. Primeiro, porque provado está que os burros não são nada burros, e muitos humanos há que assumem nas suas práticas e comportamentos essa fama alheia. Depois, porque mesmo as alminhas mais conservadoras nos hábitos, nas crenças e nos princípios, também mudam, por vezes de forma radical, outras vezes de forma progressiva e selectiva, o seu pensamento sobre coisas da vida e da sociedade.
Com a devida vénia aos meus amigos, Bento Algarvio e João Pina, um ainda bem vivo, e o outro infelizmente desaparecido, já não consigo ver a prática do boxe como uma modalidade desportiva, muito menos como de entretenimento e distracção. Adoro desporto, pratiquei desporto, vejo desporto, mas no meu cardápio de preferências sempre existiram dezenas de modalidades à frente do boxe. Ainda assim, de quando em vez, assistia a transmissões televisivas de combates. Cada vez menos, à medida que me foi sendo difícil aceitar como desporto um espectáculo em que dois seres humanos procuram infligir-se sofrimento e dor até aos limites do desfalecimento, por vezes morte.
Que uma multidão delire e aplauda um vendaval de murraços nos olhos, na boca, nos rins, no fígado e outros órgãos mais vulneráveis dos contendores, narizes partidos, caras amassadas e a escorrer sangue, é um cenário para mim deplorável, um péssimo exemplo para os mais jovens e um incentivo à violência. Não, não aceito que se justifique porque fará parte da natureza humana. Propaga uma atitude muito primitiva em relação à vida. E quem diz do boxe, diz da sua variante ainda mais violenta, o MMA (Mixed Martial Arts).
Sou do tempo em que a prática do judo e do karaté eram (e quero acreditar que ainda são) sobretudo técnicas de defesa pessoal, com códigos de conduta muito restritos na sua aplicação exterior e com terceiros. Hoje, há gente a bombar nos ginásios e nas academias com o único propósito de sair portas fora a agredir quem se atravessar pelo caminho, seja à porta da discoteca, seja por uma reles disputa de trânsito.
O mundo está perigoso. A sociedade está violenta. Existe uma cultura que se apropriou dos canais de comunicação social. Na exibição de filmes da TV por cabo, o número de fitas que passam é desproporcionalmente dominado por enredos de violência extrema. O que é que se espera daqui? A escravatura foi abolida, mas assume hoje novos formatos. O circo dos gladiadores a lutar até à morte, teve a sua época.
O boxe começou no Egipto no terceiro milénio a.C. Desapareceu entre o fim do Império Romano e 1880, quando os ingleses o ressuscitaram, chamando-lhe “Nobre Arte”. Arte cruel, talvez. De nobre não tem nada. Ser pacifista não é só desejar platonicamente o fim de todas as guerras do mundo. Também é lutar contra este estado de coisas, em tempo de recessões civilizacionais.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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