Os comboios que servem Tavira param numa estação excelentemente localizada. Foi dela que numa bela manhã saímos para a praça, saudando de passagem o soldadinho que se despede não de nós mas da moçoila (namorada?, irmã?…) que lhe acena da rotunda num eterno e brônzeo adeus.
Dessa praça fronteira à estação partem quatro ruas: dessas, uma leva aos altos da cidade onde bate o seu coração mais antigo, outra dirige-se suavemente para o centro cívico e o dolce far niente do turismo. Foi por esta que marchámos.
Está uma temperatura de Verão. “De ananazes”, na expressiva frase do Eça, mas a bela luz de Tavira tudo faz perdoar como dizia Raul Brandão: “A luz, essa sim, é que é admirável: Uma luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra”(1). Tavira é pois o tema desta crónica. Uma Tavira que foi fenícia, romana e moura e que em 1242, pelo braço castigador de D. Paio Peres Correia, Mestre da Ordem de Santiago, se tornou portuguesa, gerando a lenda local conhecida por os Mártires de Tavira, com direito a festa anual e tudo.
– Está uma caloraça dos diabos! – queixa-se de repente o António(2), no esforço de subir a íngreme Calçada dos Sete Cavaleiros, mas vida de cronista é mesmo assim: quente ou frio, seco ou húmido, lá vai ele em busca da identidade, da frase que caracterize com precisão o lugar e lhe capte o espírito. Estava mesmo muito calor, tanto mais que uns minutos antes nos tínhamos sentado a repousar numa sombreada esplanada ocupada por turistas de todos os calibres, onde éramos os únicos a usar calças compridas, contrariando a vetusta observação do Manuel da Fonseca – um dos nossos guias espirituais nesta peregrinação algarvia: “Em frente da câmara, as duas esplanadas dos cafés estão cheias de uma gente recatada e bem vestida. Não têm a menor parecença com turistas.”(3)
Pois é, os tempos mudam, penso com os meus botões enquanto subimos a rua escorregadia. Procuro com o olhar aquilo que aqui nos traz: as Igrejas de Santa Maria do Castelo e da Misericórdia, porque tenho uma tese que quero provar utilizando estas duas evidências apenas(4). A tese é a seguinte: a religião (pelo menos naqueles tempos da reconquista), não ensinava o bem mas o seu contrário, se bem que disfarçado em roupagens de pura hipocrisia.
Tenha o leitor em atenção que atrás de mim o António vai perorando: que nada daquilo é cultura, que cultura é admirar o lindo rio, é perscrutar a fachada dos prédios em busca de detalhes airosos, é estar atento às raparigas bonitas que passam, é saborear um bom petisco e por aí fora… Mas eu teimo em querer contar a história dos Mártires de Tavira. Em linguagem telegráfica é seguinte:
D. Paio Peres Correia, mestre da Ordem de Santiago, conquista Cacela; tempos depois, sete freires vão inadvertidamente fazer falcoaria para uma zona demasiadamente perto do castelo de Tavira, propriedade moura; logo lhes vem ao encontro uma força militar que limpa o sebo aos dignos freis-cavaleiros; D. Paio, mal soube do acontecimento, revoltado com a tremenda afronta, acorre com os demais cavaleiros monges e ataca Tavira, vence as forças inimigas, penetra na cidade e liquida, um a um, todos os seus habitantes, combatentes ou não, num delírio de vingança.
Quem serão afinal os mártires de Tavira?, pergunto-me eu, a sete séculos de distância…
Pois então, no cima da colina onde assenta a Igreja de Santa Maria do Castelo sobre as ruinas da mesquita moura, irei ter (espero eu) uma primeira visão do sepulcro pétreo dos sete cavaleiros. Vou rezando aos meus santinhos para não nos acontecer como ao Nobel Saramago que deu com o nariz na porta da dita igreja: “Daqui [o viajante] foi até Tavira, aonde terá que voltar outro dia se quiser ver o que trazia na ideia: o Carmo, Santa Maria do Castelo, a Misericórdia, S. Paulo […]”(5).
Felizmente uma excelente organização – Artgilão Tavira – que hoje em dia gere os fluxos turísticos nalguns monumentos da cidade, acolheu-nos com uma simpatia exemplar, mostrou-nos os trabalhos de restauro em curso na igreja, permitiu que fotografássemos o sepulcro dos cavaleiros e a putativa lápide funerária de D. Paio e (mais importante ainda sopra-me o António…) fez questão de nos oferecer uma garrafa de um vinho recém lançado que se chama como? Não adivinham? Pois chama-se exactamente: “Sete Cavaleiros do Castelo”!
Faltava-nos visitar a Igreja da Misericórdia para provar a tal tese de que vos falei, a de que a Igreja naqueles tempos fazia lembrar Frei Tomás: “Faz como ele diz não faças como ele faz”. De facto, na original e elegantíssima Igreja da Misericórdia (só ela já justifica uma visita a Tavira), o revestimento parietal é todo feito de belíssimos azulejos oitocentistas representando as catorze Obras de Misericórdia.
Corria-as todas, tentando encontrar uma que incitasse ao massacre impiedoso dos inimigos ou sequer que o referisse ou desculpabilizasse mas nada, nada mesmo. É que, vamos lá ser francos, trucidar os inimigos, mais as suas mulheres e os seus filhos, e os velhos e os cães e gatos, até se pode compreender no desvario de uma refrega, mas fazer disso motivo de orgulho e festa não consigo compreender. A guerra é sempre um retrocesso da humanidade e devemos ultrapassá-la e não festejá-la. Quem não se está a lembrar agora, ao ler estas linhas, dos sangrentos episódios da nossa vizinha, digamos assim, Ucrânia? A guerra acontece, pois, e devemos honrá-la mas nunca celebrá-la. É a minha opinião, claro. Outras haverá.
– Achas mesmo que a tua tese sobre a hipocrisia humana carecia de demonstração? – pergunta muito irónico o António.
Via-se bem que ele não estava muito interessado numa resposta, pelo que meti a viola no saco e olhando o pacífico Gilão que brilhava aos nossos pés, dei um valente trago no meu Sete Cavaleiros do Castelo e, ao fazê-lo, veio-me à memória o nosso amado Manuel da Fonseca quando cinquenta anos atrás, fitando talvez este mesmo rio, ele pensou: “Sob o céu cor de cobre, os arcos da ponte, desenhada no espelho parado da água, olham espantados para a foz, sonhando tempos antigos.”(6)
(1) Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1927 .
(2) António Homem Cardoso, fotógrafo e amigo, que me acompanha neste trajecto do Algarve Costa-a-Costa.
(3) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p. 87.
(4) Veja bem o leitor que me defendo bem não caindo na armadilha de pretender visitar as vinte e muitas igrejas de Tavira, cujo número exacto, aliás, é ainda hoje fonte de muita controvérsia.
(5) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985, p. 221
(6) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p.88