Numa crónica anterior falámos de Vila Real de Santo António, mandada construir pela mão visionária do Marquês de Pombal no ano de 1774, e pensada de raiz para funcionar como centro transformador de pescado (sobretudo sardinha), ou seja, como uma cidade-fábrica.
Como se vê, já nesse longínquo século XVIII – e aliás desde muito antes – a pesca era um recurso preponderante na economia nacional.
É claro que a sardinha era exportada em fundas barricas embrulhadas no sal branco e forte das salinas portuguesas, técnica que conservava o produto apenas durante um período relativamente breve. Mas era o melhor que se podia fazer.
Foi necessário esperar por 1804 para um cidadão francês, Nicholas Appert, descobrir a técnica da esterilização de alimentos em recipientes de vidro hermeticamente fechados. Seis anos depois um inglês, Peter Durand, aproveita a descoberta, mas patenteia uma embalagem diferente, mais segura, mais prática e leve: o invólucro metálico. A partir de meados do século o crescimento da indústria é exponencial embora o tempo tenha trazido as suas crises e momentos duros. Quanto valeria este negócio em termos económicos? Já lá iremos.
Para já, e dando um grande salto na linha do tempo, informo que em 2014 existiam em laboração vinte conserveiras em Portugal, que sustentavam cerca de sete mil postos de trabalho entre mão-de-obra direta e indireta e produziram 54 mil toneladas de conservas de peixe, das quais 12 mil de sardinha, 14 mil de atum e nove mil de cavala.
É de notar que a pesca da sardinha, de imemorial idade, foi em tempos complementada pela pesca do atum que trouxe uma fortuna nunca vista às gentes algarvias. Toda a costa se enxameou de “armações”, ou seja, desmesurados sacos feitos de rede para onde eram encaminhados os atuns que – infelizmente para eles – passavam pela costa algarvia, quer no sentido do Atlântico, quer no sentido inverso, embora as verdadeiras características destes fluxos migratórios continuarem sujeitas a muita controvérsia. O facto é que esses utilíssimos tunídeos deixaram de transitar em quantidade significativa pela nossa costa, o que levou ao encerramento de praticamente todas as fábricas conserveiras até finais dos anos 70 do século passado.
Embora o ciclo do atum tenha sido interrompido – pelo menos para as pescas portuguesas – não resisto a transcrever alguns excertos de um texto, admirável de colorido e movimento, que descreve um episódio da pesca de cerco do atum, no dealbar do século, da autoria de um grande escritor natural de Portimão, Manuel Teixeira-Gomes, de quem falaremos com o detalhe merecido numa próxima crónica.
“O sangue a água, misturados, soltavam-se aos cachões, envolvendo os peixes em púrpuras cristalinas, e ao centro da rede faziam remoinho, abrindo um poço fundo e largo, por cujas paredes transparentes giravam, desvairados, os grandes bichos cintilantes”. […] O Negrão bradou-me: Agora vou-lhe mostrar um quadro da mitologia. […] Depois de falar com o mandador, o Negrão gritou para a ré da barca: Que venha cá o Serafim! […] Então o rapaz principiou a despir aquela quantidade de trapalhada em que os pescadores se envolvem quando vão para o mar […] De pé, na borda da lancha, erguendo os braços e juntando as mãos, tomou um leve balanço e jogou-se à água, sumindo-se entre os peixes […]. Mas em poucos segundos ele surgia, montando um enorme atum que, para se desembaraçar da estranha carga, entrou a correr vertiginosamente, saltando sobre o outro peixe que lhe impedia a passagem ou mergulhando subitamente, para reaparecer alguns metros mais longe, sempre com o tritão às costas, agarrado com a mão esquerda a uma das alhetas, agitando a outra mão no ar, e dando gritos de triunfo. O rapaz estava transfigurado; resplandecia de audácia e mocidade, entre as grandes salsadas de água rubra que lhe lambiam o corpo, e luzia, ao sol, como um vivo mármore cor-de-rosa.”1
Mas voltemos à vaca fria, ou seja, ao interesse económico da pesca. Para este negócio, o mercado interno vale pouco mais de um terço do total das vendas, sendo que os restantes dois terços são exportados para cerca de setenta países. Esta atividade deve pois ser considerada com muita atenção tanto mais que, pelo menos no Algarve, esta representa uma sólida alternativa ao asfixiante turismo.
Como o estimado leitor pode concluir do que já foi dito, falar de pescas e respetiva indústria transformadora em Portugal, ou apenas no Algarve, ocuparia não apenas uma crónica mas uma biblioteca inteira, pelo que me vou centrar num detalhe apenas – a indústria conserveira em Portimão – e mesmo desse detalhe vou extrair um minúsculo episódio que tem a ver com cultura, não fosse esse o nosso leitmotiv de escrita.
Ora então, mergulhemos no tema, com um pouco de história:
No início do século XX, Portimão era uma pequena vila, embora a chegada da indústria nas décadas anteriores tivesse iniciado uma mudança económica positiva.
Apesar da linha do comboio só alcançar Portimão em 1922, a sua chegada em 1903 à margem oposta do Rio Arade revestiu-se de grande importância para a economia da vila.
Entre 1904 e 1908 funcionaram três fábricas em Portimão. A 1ª Grande Guerra, contudo, criou uma enorme procura por alimentos conservados e por esse motivo proliferaram novas fábricas ao longo do Rio Arade: em 1917 havia cerca de quinze fábricas em ambas as margens, número que aumentou para vinte e cinco até 1921, aumentando para três dezenas em 1925, ano em que se sentem os efeitos negativos da crise económica mundial e a falta de peixe na nossa costa.
As primeiras fábricas que se instalaram, porém, eram de considerável dimensão. O exemplo máximo é o de Júdice Fialho com a Fábrica de São José, seguido pela empresa Feu Hermanos com a fábrica de S. Francisco.
A Fábrica de S. José (1902) tinha um pontão robusto em alvenaria que foi intervencionado em 1936 para a instalação de uma estrutura motorizada que rodava para transportar o peixe para o interior da fábrica. Nessa estrutura pendiam ganchos que suportavam os cestos onde era colocado o peixe, o que evitava a deslocação entre a embarcação e o interior da fábrica, concentrando a atividade dos trabalhadores nas extremidades do sistema.
A Fábrica de S. Francisco (1902-1970?) tinha instalado um sistema similar, que conectava o seu cais diretamente à sala de processamento do peixe. No entanto, a estrutura do cais era diferente, sendo as fundações em alvenaria e o pavimento percorrível em madeira, sobre o qual foi instalado o mecanismo de transporte de peixe até ao interior da fábrica. Além deste mecanismo, dispunha ainda de uma linha de carris que ligava os vários espaços da fábrica.
Infelizmente, a política industrial do Estado Novo impôs mecanismos regulatórios muito condicionantes da indústria conserveira. As empresas ficaram impedidas de se modernizar e captar investimento estrangeiro mas, em contrapartida, achavam-se protegidas da concorrência. Este modelo de desenvolvimento entrou em rutura em 1966, com a quebra das capturas de sardinha e a ascensão da indústria marroquina. As fábricas foram desaparecendo, as frotas pesqueiras foram a seguir e o know how desvaneceu-se em Portimão e, aliás, em quase todo o Algarve. Os edifícios das antigas fábricas caíram em ruínas.
Em 1996, a vontade de preservar este património histórico motivou a aquisição pelo Município de Portimão da antiga fábrica de São Francisco pertencente à firma Feu Hermanos. É desse renovado edifício fabril que surge em 2008 o Museu de Portimão.
Em boa hora foi inaugurado pois, para além do didatismo obrigatório nestes espaços, assemelha -se a uma história viva, tal a capacidade descritiva das figuras dos operários (sobretudo mulheres) que em tamanho natural imitam as diversas fases da produção de conservas, seguindo o seu percurso integral, desde a chegada da sardinha à lota até à saída das latas de conserva para os diversíssimos mercados, estabelecendo assim um padrão qualitativo para honrar a memória desses tempos, substituídos agora pelos tempos do turismo todo poderoso.
Aproveitando parte importante do espaço fabril, sobretudo a antiga Casa de Descabeço, foi possível, para além da interessantíssima descrição dessa atividade, preservar um edifício paradigmático de um período de riqueza e bem-estar.
Está Portimão de parabéns por dar à Região um tão belo exemplo.
(1) Teixeira-Gomes, Manuel, Agosto Azul, in Obras Completas, Lisboa, INCM, 2007.
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