A cidade de Lagos sofreu horrivelmente com o tremor-de-terra de 1755 e o maremoto subsequente, fenómeno de proporções homéricas que causaram estragos imensos no edificado. Por essa razão Lagos, após essa tragédia, entrou numa estagnação da qual só foi resgatada em meados do séc. XIX pelo fenómeno da indústria conserveira. Finalmente, o turismo ergueu das cinzas essa Fénix, espera-se que por muitos e bons anos. Como consequência óbvia a cidade não possui monumentos que por si só justifiquem uma visita. De facto, é o conjunto urbano e o seu diálogo permanente com o mar e o rio, juntamente com uma luz mágica, intensa e suave com algo de meiguice mesmo quando nos dias de verão parece crestar as epidermes delicadas.
Chegámos à cidade com um programa pesado (visto que apenas dispúnhamos do período entre o meio-dia e as cinco da tarde), e que incluía duas igrejas, a de D. Sebastião e a de Santo António; o museu de Lagos, o porto-museu da escravatura e duas estátuas, a de Gil Eanes e a do nosso malogrado Rei, D. Sebastião. Se tivéssemos tempo daríamos uma olhada (fotográfica) à janela Manuelina, aos baluartes e ao Forte da Ponta da Bandeira. A coisa não correu conforme o planeado porque era dia de entrada gratuita nos museus e uma pequena multidão fazia fila à porta da Igreja de Santo António/Museu de Lagos e, mesmo puxando dos nossos pergaminhos de cronista e fotógrafo, um temível Cérbero1 recambiou-nos para a fila o que fez derrapar o nosso programa.
Valeu apenas termos esperado, por duas razões: a primeira porque, segundo as informações do guia turístico da cidade, a Igreja de Santo António foi “reconstruída, em 1769, por iniciativa do comando do Regimento de Infantaria de Lagos (serviu-lhe de capela). Por esse motivo, a imagem do santo patrono recebia o soldo de capitão e, a partir de 1780, de tenente-general.” A nossa visita, mesmo que artisticamente o templo não o merecesse, corresponderia a uma deferência a essa singular simbiose mas o caso é que não perdemos o nosso tempo.
De facto, a igreja merece uma visita bem mais prolongada do que a nossa. Disse Saramago quando por aqui passou: “Na Igreja de Santo António de Lagos, os entalhadores perderam a cabeça: tudo quanto o barroco inventou está aqui. O tecto de madeira, em abóbada de berço, é pintado numa ousada perspectiva […] a abóboda fingida em pedra. Aos cantos os quatro evangelistas olham desconfiadamente o viajante”; “Quem pintou o tecto? Não se sabe.”2.
A segunda razão que justificou a nossa espera é que o António quis fotografar o dito teto, tendo para o efeito que se deitar de costas no chão para conseguir a perspetiva mais favorável. A imagem aí fica, para o leitor ver se valeu a pena o esforço.
O tempo, porém, urgia e ainda queríamos ver os baluartes da Portas do Mar que nos disseram ser os mais imponentes e cénicos. Quando lá chegámos e perante o nicho de São Gonçalo de Lagos adossado à potente muralha fui assaltado por uma dúvida: quem seria esse santo com direito a nomear um local tão conspícuo? Consultei uma extensa lista hagiográfica proporcionada pela wiki e conclui: esse Santo nunca existiu. Na verdade, nasceu em Lagos – contemporâneo do nosso D. Pedro I, pela Graça de Deus, Rei de Portugal e do Algarve – e, depois de umas voltas pela Lourinhã e Lisboa, assentou praça em Torres Vedras onde morreu. Então porque é que eu digo que ele nunca existiu? Porque nunca foi santificado! O nosso Frei Gonçalo chegou apenas ao posto de beato, pela mão do Papa Pio VI, em 1778. Mas deixemo-nos de preciosismos e saudemos esse Beato como se de jure fosse Santo porque, mesmo de longe, sempre olhou pelo povo da terra em que nascera, sobretudo o mais humilde.
E a propósito de humildes, gostaria de referir os mais humildes dos homens, infelizes seres humanos que por diversas razões, mas sempre sem qualquer justificação ética, perderam a liberdade e foram forçados a servir a estranhos senhores em terras estranhas. Tem isso o nome execrável de escravatura e o nosso querido País foi um triste ator nessa teia universal que permitia a homens livres serem “donos!” de outros homens espoliados de direitos, bens, esperanças…
“Lagos tem um mercado de escravos mas não parece gostar que se saiba”, refletiu Saramago quando por aqui passou há umas boas dúzias de anos. Disso não se pode acusar a Lagos atual porque, para além de assumirem essa página triste da nossa história, o declaram publicamente com frontalidade, contenção e beleza. Na verdade, um pequeno núcleo museológico com o tema da Escravatura e muito bem apoiado nas novas tecnologias, está à disposição do público no primeiro andar do mesmo edifício onde noutros tempos, no plano térreo, se regateava o preço de seres humanos.
Portugal não tem que se envergonhar da sua história, por muito criticável que esta hoje nos pareça. O que foi feito não pode ser desfeito mas pode e deve originar uma reflexão profunda, à luz dos valores atuais. Talvez até não fique mal um mea culpa verdadeiro e sentido, como forma de nos fazermos perdoar por essas almas sacrificadas.
Lagos fez a sua parte: montou um atraente núcleo museológico no mesmo terreiro onde corpos e almas foram trocados por moedas. À população que por ali passa pede-se um minuto de silêncio e uma simples oração a um Deus conhecido ou desconhecido, com a esperança de que um dia, talvez em outro mundo, todas estas contas sejam finalmente saldadas.
(1) Monstro mitológico responsável por guardar o reino do Hades.
(2) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985, p. 231
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