Com este texto termina a nossa lenta peregrinação por terras dos Algarves. Embarcámos em Vila Real de Santo António e, após trinta estações e uns vagarosos cento e quarenta quilómetros, desembarcámos em Lagos, e só não fomos mais longe porque a linha acaba aqui.
Deste ponto extremo de observação sentimo-nos tentados a fazer nesta derradeira crónica algo um pouco diferente. Animado pelo encorajamento do Mestre Homem Cardoso, – teimou em que a história que buscamos é afinal a verdadeira cultura – e apesar de não ter os adequados galões científicos, vou utilizar a nossa presença nesta simpática e dinâmica cidade para tentar falar de história. Não uma dessas que se escrevem com números, datas, factos verificáveis e muitas idas à Wikipedia, mas como o poderá fazer qualquer coração lusitano que, emocionado por esta linda cidade, ouse falar sobre a história arquetípica da Lusitânia, exatamente daquele século e meio que se estende desde o primeiro olhar inquisitivo de Henrique de Avis ao Mar Tenebroso – a esse olhar soberano chamarei Alfa – e o temerário olhar do nosso saudoso Sebastião, Rei de Portugal e dos Algarves, dirigido a um pedaço de África invisível na bruma do Estreito, olhar que designarei por Ómega. Entre o Alfa e o Ómega: entre o Princípio e o Fim, eis o período dourado do nosso querido Portugal que nos apraz rememorar.
Lagos foi uma pérola no grande colar que se estendeu das costas lusitanas até aos confins da Terra. Deste porto partiram as primeiras caravelas que demandaram os mares africanos, mas também daqui, um pouco antes, em 1415, partiu uma expedição de vinte mil homens em duzentas embarcações de vários tipos, com o objetivo de conquistar a rica praça de Ceuta. Na imensa frota seguiam os príncipes da Ínclita Geração. Entre eles D. Henrique, 1º duque de Viseu, o que mais tarde receberia o cognome de O Navegador. Após a vitória, logo ali os príncipes foram armados cavaleiros pelo seu Rei e Pai, D. João I.
Talvez esse êxito fácil tivesse sido um dos fatores desencadeantes da saga dos descobrimentos portugueses. O que se sabe é que a partir de 1419 e nos quinze anos seguintes, um número indeterminado de navios aprestados por ordem de D. Henrique, partindo de Lagos, iniciaram a vagarosa exploração da costa de África. Nessa descida pelo desconhecido foram tropeçando em pérolas intocadas pelo homem: as ilhas atlânticas da Madeira, das Canárias e dos Açores. O objetivo final, contudo, não era descobrir ilhas, mas pôr em causa a veracidade da lenda de que para além do cabo Bojador qualquer navegação era impossível e que o sonho de atingir a Índia por mar não passava disso mesmo.
Finalmente, em 1434 o improvável aconteceu: em mais uma disciplinada expedição, Gil Eanes, ao comando de uma barca de panos redondos, logrou ultrapassar um dos obstáculos até ao momento intransponível e trazer como prova do sucesso um punhado de flores silvestres colhidas nos campos do continente recém-descoberto e a que mais tarde se dará o nome de rosas de Santa Maria.
Não o terá feito sem dor, contudo, porque, como disse Pessoa: “Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor.” Em 1948, Gil Eanes ganhou uma bela estátua da autoria de Canto da Maia, colocada nos anos sessenta do século passado junto ao oratório de São Gonçalo de Lagos e aos maciços baluartes que há séculos guardam a Porta do Mar na cidade amuralhada. Este foi então o Alfa.
Dando agora um salto de século e meio chegamos ao Ómega. Nesse longo período prestigioso e vibrante acumularam-se no Reino intermináveis fortunas. Os reis da ilustre dinastia de Avis fizeram o que puderam para engrandecer Portugal e, se não conseguiram endireitar para sempre esta curiosa Nação, pelo menos escreveram nos anais da história universal páginas imorredouras.
Recapitulando: Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador e dez anos depois foi criada a parceria de Lagos para a metódica exploração da costa da Guiné. Faziam parte dela Gil Eanes juntamente com Lançarote Freitas, Estevão Afonso, Rodrigo Álvares e João Dias, entre outros. Essas andanças iam aumentando a riqueza e o prestígio de Lagos. D. Manuel I concedeu-lhe foral em 1504. D. Sebastião elevou-a a cidade, em 1573.
Foi daqui que esse mesmo Sebastião num dia quente de Agosto de 1578 partiu, hélas, para a malograda campanha de Alcácer Quibir. E assim, tristemente, chegamos ao Ómega. Ao fim da trágica história portuguesa. Mas convém saber-se que antes do Rei embarcar já um ingrato pressentimento vibrava no coração de alguns.
“Enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela”, o escreveu, deste modo supinamente belo e trágico, Luís de Camões, o homem que melhor cantou as nossas passadas glórias.
D. Sebastião, de facto, empregou uma parte significativa da riqueza do Império para equipar uma grande frota e reunir um numeroso, mas impreparado exército, com o qual planeava destroçar os exércitos inimigos que o esperavam a pé firme no interland de Marrocos.
Não sucedeu assim, mas exatamente o oposto: no infausto dia 4 de Agosto de 1578 as tropas portuguesas foram desbaratadas pelos mouros e ferozmente chacinadas, numa única e terrível tarde. O Rei, com apenas 24 anos, morreu como um valente. “Morrer sim mas devagar”, terá gritado quando, ciente da derrota, esporeou talvez pela última vez o seu ginete em direção à chusma dos inimigos.
Morreu sem deixar descendência. Morreu, e deixou um reino desfeito à mercê dos abutres que não tardaram a chegar: foi fartar vilanagem. O Povo, porém, o nosso bom e abnegado Povo, nunca aceitou a sua morte e esperou (espera…) sempre o seu regresso mas – penso eu – em nenhuma misteriosa manhã de nevoeiro os nossos braços fraternais terão a alegria de um dia vir a acolher essa “maravilha fatal da nossa idade”.
Em 1972 Lagos dedicou-lhe uma estátua. Há quem a ache bela. Saramago, na sua passagem por Lagos, não se pronunciou sobre a estética da peça. Apenas observou: “Mas a estátua que de D. Sebastião fez João Cutileiro, e está ali na praça Gil Eanes, mostra um confiante e puríssimo adolescente”.
Também não me quero pronunciar sobre os dotes artísticos da peça, mas apenas chamar a atenção para o facto curioso de ter sido erigida precisamente na Praça Gil Eanes. De que no mesmo local onde se recorda o Alfa desta longa história, se lembra o Rei que tão ingloriamente se afundou juntamente com a Nação nos angustiantes abismos do Ómega.
Puseram-nos lá juntos e aí continuam: o homem que nada tinha e tudo achou, como anfitrião do homem que tudo tinha e tudo perdeu. E nós com ele.
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