Com a nossa chegada a Lagos acaba-se igualmente a via férrea do Algarve. Daqui para diante só mesmo de automóvel. Fica assim por explorar uma zona provavelmente pejada de curiosidades maravilhosas que poderiam eventualmente responder à questão que dá título geral à nossa lentíssima peregrinação: “Mas afinal o que é isso da Cultura”, mas, infelizmente, só me ocorre citar a Ponta de Sagres e todo o simbolismo nacional a esta associada. Muito mais haverá, mas nós, para já, ficaremos por aqui.
Teixeira Gomes, grande figura pública e escritor, nascido em Portimão, mas algarvio de coração, também, como nós, visitou a cidade e, mais importante para nosso deleite escreveu a sua vivência. Diz ele: “À entrada de Lagos a surpresa […] da ria lavada de toda a fresquidão do mar, o hálito da preia-mar em aragens leves e penetrantes, cheirando a melancia; e o mar, uma linha azulada onde se balouçava um grande patacho branco.”1
Não podemos subscrever a experiência do escritor, porque a nossa chegada de comboio, se bem que bordejando a costa, foi feita através de zonas já ocupadas pelos mais diversos fenómenos urbanísticos que, longe de alindar, só desfeiam a paisagem mas, já se sabe, é isto a civilização…
Aliás, como um dos propósitos destas crónicas era explorar a vantagem das deslocações de comboio relativamente ao automóvel, cabe aqui um comentário negativo. Não fui eu que reparei, foi o António2 que, vindo da casa de banho, meio esbaforido, me pergunta se eu sei que os dejetos são atirados diretamente para cima dos carris. Não, não sabia e acho inacreditável que isso ainda suceda no ano de 2023, mas enfim… Já que estamos no campo das reclamações aproveito para falar do seguinte: entre Tunes e Lagos há um trânsito constante de turistas que vêm de Lisboa ou de Faro e que, muito naturalmente, transportam com eles volumosas bagagens. Pois, meus senhores, NÃO há uma zona para guardar malas nas carruagens e os turistas são obrigados a levá-las com eles junto ou sobre os assentos, na maior das balbúrdias e maçada. Caros responsáveis: uma chave de parafusos resolveria o problema com rapidez e eficiência. Vamos a isto: espaço para bagagens compatível com a utilização das carruagens. Nós fizemos a viagem em abril e tivemos imensa dificuldade em encontrar um lugar. Imagino o que não será no verão!
Falemos agora de coisas boas. Para amenizar o ambiente chamamos de novo à colação Teixeira Gomes, para nos ajudar o rememorar outros tempos em que o ar era mais límpido e o tempo menos rápido: “[…] o pesado, quase palpável perfume das moitas de rosmaninho…; os vastos horizontes familiares, mas duma tão perpétua novidade, abrangendo no mar faiscante o recorte sinuoso da costa, lá da ponta do Altar às rochas do Cabo, com os estuários do Arade e da ria de Alvor e, a norte, a perspetiva circular das serras que fecham o Algarve, imponentes e até importunas quase nas altíssimas ondulações da Fóia e da Picota, mas morrendo em linhas azuladas, como que esvaídas, direito ao mar […]”3
Atualmente estas imagens são apenas esboços que Mnemosine4 se encarregará de completar com o seu antigo saber, ou não fosse ela filha do Céu e da Terra; todavia a luz maravilhosamente clara e suave que nos recebeu foi, muito provavelmente, semelhante àquela que Teixeira Gomes saboreou nesse passado distante.
A estação de Lagos, onde chegámos ia o dia a meio, é moderna e por isso mesmo diferente de todas as outras estações da linha regional e o que perde em tipicidade ganha em funcionalidade e neste século esse é um valor muitíssimo apreciado. É pena que, apesar de não ter qualquer culpa no cartório, tenha sido o palco de um percalço imprevisto. Eu explico: quando, estafados, após um dia a calcorrearmos a cidade, chegámos à estação para apanhar o comboio das cinco e vinte para Tunes (e daí para Lisboa), nos disseram que essa composição fora cancelada pela greve! Como na véspera a CP nos tinha vendido bilhetes de ida e volta, achámo-nos no direito de reclamar, mas, depois de muita conversa que não serviu para nada, vimo-nos forçados a alugar um carro para chegar a Tunes a tempo de apanhar o Alfa. Conclusão: este percurso foi mais caro do que a viagem inteira. É assim a vida de um cronista, meus amigos, repleta de transtornos.
Levávamos um programa que pudesse caber entre o meio-dia e as cinco da tarde mas, claro, fomos por demais ambiciosos e, entre portas fechadas e filas intermináveis de visitantes tivemos que reduzir as nossas ambições.
Lagos tem uma origem celta que se perde nos tempos. Prosperou com a integração no império romano e nos domínios omíadas. Finalmente, foi presa da reconquista cristã em 1249. Mas o que mais interessa é a sua história no séc. XV onde foi porto estratégico para a conquista das praças fortes do Magrebe e para a descoberta e reconhecimento da costa atlântica de África. O Infante D. Henrique com o seu vestuário negro e o seu estranho chapeirão aqui residiu e formou uma escola de navegadores avisados e valorosos. É isso aliás que me apetece falar, mas como hoje me alarguei demasiado, esse assunto ficará para uma próxima crónica. Mas posso já desvendar que irei falar do Infante D. Henrique – que será o meu Alfa – e do saudoso Rei D. Sebastião – o meu Ómega – e nestes extremos em que a história pátria resplandece, rememorar o grato período durante o qual fomos cientistas e aventureiros poderosos e perspicazes.
Não devemos esquecer, contudo, que hoje em dia Lagos tem um futuro risonho e é uma das localidades algarvias com um turismo mais sustentável. O centro histórico da própria cidade resistiu à força da urbanização maciça, e atrai mais e mais gente a cada ano que passa. Um exemplo recente é o dos nómadas digitais, uma nova espécie de jovens turistas nacionais e internacionais que trabalham prioritariamente na área das tecnologias de informação e que estão a ficar rendidos ao encanto da cidade. Um projeto local criado em 2020, designado Lagos Digital Nomads, afirma que a comunidade conta atualmente com 6.500 membros e está ativa entre o meio de Setembro e o meio de Maio. Pois é assim, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Que venham jovens, muitos, para enriquecer Portugal e para se enriquecerem a eles próprios.
(1) Teixeira Gomes, in Guia de Portugal, Biblioteca Nacional de Lisboa, 1927, p. 279
(2) António Homem Cardoso, mestre fotógrafo, que pacientemente me tem acompanhado nestas viagens.
(3) op. cit. p. 299
(4) deusa grega da memória.
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