Costumo referir que as bibliotecas são uma viagem no tempo, e quando são todas revestidas em madeira essa viagem é mais profunda e remete-me para as bibliotecas da infância. Transporta até à matéria-prima que são as árvores e que está presente nas paredes, nos mobiliários e, em última instância, nos livros.
A Biblioteca da Imprensa Nacional – Casa da Moeda situada em Lisboa, na Rua da Escola Politécnica, nº 135, é um desses, hoje em dia raros exemplos.
Quem passa na rua não imagina que dentro do vetusto edifício, se esconde uma magnífica biblioteca completamente forrada com estantes e janelas em madeira, tal como o mobiliário. Um destaque particular também deve ser dado ao magnífico vitral que adorna a parede de fundo da sala.
O edifício é enorme e lá situa-se a gráfica onde ainda hoje são impressas as edições da INCM e os selos dos maços de tabaco. Até 2016 o Diário da República era produzido e impresso nesta mesma gráfica.
Durante o Estado Novo o principal desafio da Biblioteca passou pela resposta ao crescente número de consultas ao Diário do Governo e outra legislação, levando à especialização da Biblioteca.
Nela encontram-se obras anteriores ao séc. XVI, e também parte daquilo que em tempos foi uma escola de tipografia.
Esta Biblioteca tem cerca de 20.000 livros e uma imensa diversidade temática e destina-se ao público em geral, mas também a investigadores de diversas áreas.
O seu acervo inclui uma parte importante da produção editorial da Imprensa Nacional, desde 1769.
Quando cheguei à Biblioteca fui recebida pela investigadora Inês Queiroz, doutorada em História Contemporânea, que me mostrou a Biblioteca e partilhou a sua paixão pela história deste local, para além de me ter colocado nas mãos o livro mais antigo que se encontra naquele espaço. Foi com emoção que peguei nesse livro, que tem 254 anos.
Os livros têm esse dom de fazer recuar no tempo e recriar imaginariamente as vivências dos apaixonados por livros que nos precederam. Hoje é tão fácil adquirir livros ou requisitá-los numa biblioteca, que os mais jovens nem imaginam o quanto isso poderia ser raro.
Considerando que esta Biblioteca tem uma vocação historicamente ligada ao ensino das artes gráficas, a Biblioteca também integra uma colecção de livros técnicos, como catálogos de tipos, manuais de ensino e produção gráfica com especial interesse para um público especializado em design e artes gráficas.
Acresce ainda algumas raridades bibliograficamente valiosas, com especial interesse para a investigação, incluindo três incunábulos e alguns manuscritos, além de uma colecção que compreende várias edições de Os Lusíadas em diversas línguas, formatos e materiais.
Este património é muito importante para quem se dedica aos estudos camonianos.
Por ocasião do 3º centenário da morte de Camões, em 1880, foi também fomentada uma maior vocação cultural da Biblioteca, o que levou a que o espaço fosse disponibilizado aos empregados, artistas e operários da Imprensa Nacional, bem como aos sócios da Associação Tipográfica Lisbonense, para aí estudarem e se prepararem para exames.
Nesta altura, entre várias trocas bibliográficas, Teófilo Braga ofereceu um exemplar da Bibliografia Camoniana, contribuindo para o enriquecimento que se verificava nos últimos anos.
A Biblioteca tem afirmado a sua missão, enquanto agente de cultura da cidade de Lisboa, promovendo o acesso livre e gratuito para a realização de temporadas de música e de teatro, apresentações de livros, exposições e colóquios.
O primeiro grande impulso dado a esta Biblioteca verificou-se entre 1804 e 1806, com a integração de mais de 500 edições estrangeiras provenientes da Loja da Praça do Comércio e da antiga Casa Literária do Arco do Cego, compradas a livreiros como João Baptista Reycend.
Este processo de crescimento sofreu, no entanto, perdas significativas após as invasões francesas. Entre Abril e Maio de 1826, cerca de metade do seu património foi remetido para a Biblioteca da Ajuda, então em processo de reconstituição, após o regresso do Rei D. João VI do Brasil.
A partir desta altura, a Biblioteca foi crescendo, quer através da incorporação das edições próprias da Imprensa Nacional, quer através de doações e aquisições, como leilões e desmembramentos de bibliotecas particulares, das quais resultou a integração dos três incunábulos ainda existentes e de numerosas obras de edição portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Na viragem para o século XX, e com a construção do novo edifício da Imprensa Nacional, onde ainda hoje se encontra instalada, a Biblioteca passou a ter novas instalações. Até então localizava-se no andar nobre do velho Palácio Soares de Noronha, virado para a Rua da Imprensa Nacional, que faz esquina com a Rua da Escola Politécnica.
A criação de uma nova Biblioteca foi sobretudo iniciativa de Luís Derouet, Director-Geral da Imprensa Nacional entre 1910 e 1927.
A nova Biblioteca foi inaugurada oficialmente a 3 de Outubro de 1923, com a presença do Presidente da República, António José de Almeida, cujo nome foi atribuído à nova sala.
Depois de renovada, a Biblioteca da Imprensa Nacional assumiu, assim, a missão de “guardar e conservar todas as obras literárias, artísticas ou históricas, impressas na mesma Imprensa, as respeitantes às artes gráficas, tanto nacionais como estrangeiras, e ainda quaisquer outras que lhe sejam oferecidas ou se repute conveniente adquirir”, devendo também contribuir para a organização da “bibliografia gráfica portuguesa.”
Nove meses depois, em Julho de 1924, a sala foi oficialmente aberta ao público e há registos de que nos primeiros seis meses teve 86 visitas, “numa afluência inicialmente marcada pela curiosidade, mas com crescimento considerável nos anos seguintes.”
Para além da sua função de consulta bibliográfica, a Biblioteca “serviu de sede de algumas das exposições e de sala de conferências.” Essa missão voltou a ser reafirmada, por iniciativa de Duarte Azinheira, então director da área de publicações da INCM, com actividades como lançamentos de livros, concertos, seminários e outros eventos de livre acesso. Nesta reaproximação com a comunidade o Catálogo Digital passou a estar disponível online a partir de 3.10.2023.
Mais de dois séculos e meio depois, a Biblioteca da Imprensa Nacional continua a crescer, alargando a sua relação com o público e assegurando a sua missão ao serviço da cultura.
A partir de 2024 estará aberta ao público sem necessidade de marcação prévia.
Ver esta Biblioteca, com o seu importante espólio bem preservado, ter um papel tão proeminente, na actualidade, evidencia como a aposta no património é o caminho a seguir quando se quer afirmar uma cidadania responsável.
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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