Volto a Orhan Pamuk, um dos meus autores de eleição de longa data, cuja obra (narrativa e ensaística) tenho vindo a ler desde que começou a ser publicado entre nós, pela Editorial Presença, penso que ainda antes de ter sido laureado em 2006 com o Prémio Nobel da Literatura.
Noites de Peste é o seu mais recente romance, com tradução de Marta Mendonça. Comecei-o ontem, e por coincidência no mesmo dia foi publicada, na Revista E, do Expresso, uma entrevista de Luciana Leiderfarb: “Estou vivo porque, às vezes, tive de ficar calado”.
A ação passa-se em 1901, quando começa a deflagrar um surto de peste, vindo da China. No cair da noite, com a discrição de um espião, o navio real Aziziye aproxima-se sorrateiramente da famosa ilha de Mingheria, «a Esmeralda de pedra rosa», o 29.º estado de um Império Otomano que se encontra em decadência.
A bordo do navio, segue um casal de recém-casados: a princesa Pakize, filha de um sultão deposto, e o seu recente marido e príncipe consorte doutor Nuri. Outro passageiro é Bonkowski Paxá, o químico real. Cada um deles terá uma missão distinta para cumprir, sendo que o principal é evitar ou mitigar a todo o custo a catástrofe eminente. Não só é quase certo que a maioria dos habitantes de Mingheria não sobreviverá às próximas semanas – principalmente quando teimam em não cumprir as regras de quarentena ou reconhecer que há de facto uma doença a deflagrar, além dos próprios rumores que alguns no poder tentam abafar -, como também é esperado que o povo da ilha seja manipulado, de modo a virar muçulmanos contra cristãos.
Quando o terceiro passageiro, Bonkowski Paxá, químico real, aparece subitamente morto, percebe-se que a peste não é o único assassino e que este romance histórico, exaustivo, que requer tempo (são 600 páginas de letra miudinha), começa a ganhar laivos de romance policial. Não faltam, também, as teorias da conspiração, como aqueles que acreditam que a doença foi trazida para a ilha deliberadamente, de modo a libertá-la do domínio otomano.
É forte a tentação de encarar este romance como uma fábula em torno da pandemia vivenciada em 2020
É forte a tentação de encarar este romance como uma fábula em torno da pandemia vivenciada em 2020, mas a verdade é que este projeto é anterior à epidemia de Covid-19. O autor chegou a escrever um artigo justamente para elucidar os seus leitores a esse propósito. Uma alegoria que ao tocar o confinamento, a doença, o distanciamento social, a quarentena, lança simultaneamente uma estranha nova luz sobre os eventos dos últimos anos, além de que o autor não se coíbe de tecer a sua própria crítica: “A quarentena é a arte de educar os cidadãos mesmo contra a sua vontade, e de lhes ensinar a técnica da autopreservação.” (p. 136)
Curiosamente, em diversas passagens, há também a recorrente contagem das pessoas que naquele dia morreram de peste – o que mais uma vez nos remete para estranhos tempos vividos mais recentemente.
A claustrofobia, em alguns momentos, é claramente enfatizada por se tratar de uma população que se vê presa numa pequena ilha, com os barcos de outras nações a cercá-la.
Uma obra que resulta de uma pesquisa feita durante décadas, e corresponde a um desejo do autor de reconstrução histórica – por isso são frequentes as suas alusões a fontes (ainda que imaginárias) – do que se viveu ao longo de cerca de seis meses “agitados e decisivos” na ilha de Mingheria, pérola do Mediterrâneo Oriental.
A narração, normalmente omnisciente, é feita “cento e dezasseis anos mais tarde”, ainda que o narrador alegue que não quer “tentar «interpretar»” (p. 191). Talvez por isso, por querer evitar entrar nos meandros da ficção hipotética, há vários momentos em que o narrador (que se pretende historiador) alega que, para melhor compreender os factos narrados, tenha decidido “abordar a questão do ponto de vista de um romancista” (p. 285). Até porque a Pamuk, mais do que a História, escrita nos manuais (que tantas vezes refere), interessa sobretudo a história de como o pequeno e o grande se tocam, de qual pode ser afinal o papel individual no coletivo:
“Qual é o papel da “personalidade” na História? Para alguns, esta questão é imaterial. Veem a História como uma roda colossal muito mais do que qualquer indivíduo.” (p. 230)
Leia-se ainda, a este propósito, páginas depois, como este narrador, que é também ele um de nós (melhor dizendo, esconde-se num plural anódino, para depois revelar a sua verdadeira identidade), afirma: “estamos a contar a história de um país muito pequeno em que as emoções e as decisões dos indivíduos podiam frequentemente alterar o curso da História.” (p. 245) A ironia é especialmente forte em alguns momentos, como quando se alega que o longo tempo (uns 10 minutos) que o xeque levou na casa de banho foi determinante alterando para sempre o rumo da história mingheriana.
Há uma estranha nota premonitória neste romance
Há ainda uma estranha nota premonitória neste romance, poderíamos nós pensar, se não fosse afinal uma informação que originalmente atestava já o desfecho ordinário para quem se atreve a conjeturar através da arte da ficção. Tendo Orhan Pamuk sido levado a tribunal por desrespeito ao Governo turco, alegadamente por ter tecido correspondências entre uma personagem e a figura de Kemal Atatürk, é curioso como em Noites de Peste se encontra, a propósito do amor mitológico de duas outras personagens, a seguinte passagem:
“Aqueles que têm manifestado as suas reservas quanto a esses mitos, que têm sugerido que possam ter sido fabricados, ou que simplesmente brincaram com a sua exageração, têm muitas vezes acabado na prisão.” (p. 545)
Tem sido esse, também, por vezes, um destino eminente para este romancista turco que é ora atacado ora vangloriado pelo seu país. Um romancista e “entusiasta de História” (p. 579) que é referenciado, mais do que uma vez, no final do romance, também por partilhar – com a voz que nos narra – um estranho gosto por museus.
Orhan Pamuk nasceu na Turquia, em 1952, e estudou Arquitetura antes de se licenciar em Jornalismo na Universidade de Istambul. Grande estudioso e leitor insaciável, escreve desde os 23 anos, uma atividade que o tornou universalmente conhecido e lhe valeu variadíssimos prémios e distinções. A obra de Pamuk é apreciada por milhares de leitores quer no Ocidente quer no seu país natal, onde os seus livros são sempre bestsellers, apesar das posições críticas manifestadas em relação à política da Turquia.
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