SECA NO ALGARVE: SENSAÇÕES, PERCEPÇÕES, MITOS E REALIDADES
Customizou-se nos últimos anos, em torno de vários temas electrizantes, fulminantes, fracturantes, preocupantes, e mais uma enormidade de termos acabados em “antes”, o uso da palavra “percepção”, no sentido de que a realidade não bate certa com aquilo que aparenta ser. Que os números se desviam dos factos tal qual são, ou tal qual se passam. Na (in)segurança, por exemplo. O número e a gravidade dos crimes sobem em flecha, mas há muito quem defenda que a percepção é bem maior do que a realidade, inflacionada pelo dramatismo dos media, pela cobertura exagerada das televisões transformadas em delegações da TV Crime. Isto, já para não falar na escaldante equação insegurança=imigração, dividindo as claques como num benfica-sporting. Aqueles que vêem racismo e xenofobia a cada esquina, e aqueles que denunciam a ocultação da etnia, raça, religião, ou cor de pele dos criminosos, a que as forças de segurança estão obrigadas.
Não! O Algarve não vai virar a extensão d’aquém mar do deserto Sahara
Na corrupção, outro exemplo, em que Portugal continua a subir nos rankings mundiais da percepção, mas onde o número de corruptos julgados e detidos é ridiculamente diminuto face ao aparato de tantas investigações, buscas, suspeições, inquirições, escutas e respectiva divulgação.
No sector da Saúde, outro exemplo, com faca de dois gumes. Existe uma ideia generalizada de que tudo funciona mal, o que é errado e injusto para quem ali tanto se esforça para diminuir o sofrimento dos outros. Mas é bem verdade que o SNS já funcionou bem melhor e precisa de ser gerido com mais competência. A derrapagem acentuou-se quando se encurtou o horário de trabalho na função pública, por conveniência partidária da geringonça, pretensamente sem agravamento de custos para o erário público, o que se veio a verificar ser completamente falso.
Devem existir poucos países no mundo com um serviço público de Saúde tão generoso e tão abrangente como o nosso. Foi aqui, no epicentro da pandemia, que ficou para a história a célebre expressão da senhora directora Graça Freitas sobre “a falsa sensação de segurança” das máscaras, pouco antes de inverter a agulha e passar a recomendar o seu uso obrigatório.
Nesta questão das percepções, também se pode inserir a imagem de que o Algarve está em estado avançado de desertificação, à míngua de água, e que estamos perante o mais grave período de seca da nossa História. A autoridade testemunhal de quem já leva quase sete décadas de existência pode afiançar que já viu tudo e o seu contrário, sem precisar de escavar em séculos anteriores.
Houve períodos de seca prolongada, na década de oitenta, por exemplo, com situações de emergência no abastecimento público terríveis e sem paralelo com a actualidade porque, entretanto, a região se equipou melhor para fazer face a essas contingências. Houve períodos de “invernia”, em que chovia semanas inteiras sem parar, devagar devagarinho, hoje substituídas por fenómenos súbitos de precipitação, que se perde em grande medida para o mar, e inunda as urbes ribeirinhas, de Portimão a Monte Gordo, passando por Albufeira, Faro ou Tavira, só para recordar alguns locais que são notícia frequente quando desaba água das nuvens.
Quando se fala na falta de água do Algarve, é preciso não embarcar à primeira, nem nas percepções, nem na mitologia. A primeira causa da escassez nas torneiras, tem a ver com o aumento brutal do consumo nas últimas quatro décadas, derivado de um planeamento urbanístico que continua a aprovar áreas construídas sem parar nem reflectir que, quantas mais pessoas, quantos mais turistas, quantos mais residentes fiscais, quantos mais trabalhadores, maior é a necessidade de água potável, ou seja, tratada. Há que ter este factor em consideração quando se planeia, quando se ordena, e isso não parece ter acontecido.
Vale a pena ler um estudo recentemente apresentado, da responsabilidade de Mário Palhavã, Jorge Frois, Macário Correia e Manuel Costa. Sustentado em séries cronológicas de muito longo prazo da precipitação no Algarve, registadas nas estações meteorológicas da Direcção Regional de Agricultura (12) e do IPMA (3), nem é verdade que esteja a chover menos no Algarve, nem são novidade nenhuma as séries curtas de anos seguidos de seca. Sempre foi assim.
Actualmente, o Algarve consome anualmente 310 milhões de metros cúbicos de água, e 70% vai para a agricultura, e bem, que diversificar a economia é isso mesmo. Porém, o potencial de crescimento dos recursos é apreciável, se houver investimento em barragens como a da Foupana, no aproveitamento das águas residuais, na correcção do desperdício em rede, na gestão integrada dos aquíferos, no aproveitamento do Pomarão e na ligação do Alqueva às barragens do Algarve. Finalmente, tem inconvenientes ambientais, tem muitos inimigos, a água sai mais cara, mas a construção da dessalinizadora não deve ser descartada, por uma questão de salvaguarda, reserva e precaução. A sua fonte, o oceano Atlântico, é inesgotável. Não! O Algarve não vai virar a extensão d’aquém mar do deserto Sahara. Já cá não está quem falou, a propósito de um aeroporto. Jamé!
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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