O sol já passara sobre Cacela.
E sentado no muro caiado da aldeia pequena e bela onde nasceu, lá está ele embriagado pela luz do sol poente que tingia o mar, e tudo à volta, de um vermelho laranja cor de fogo. As ondas que banham suavemente a pequena ilhota um pouco mais abaixo, trouxeram-no em sonho do seu exílio onde se encontra em Ceuta.
Nas suas memórias, Ibn Darray al-Qastalli repara que, no largo agora com o seu nome, não tinha ideia da igreja existente ao lado do muro, e a cidade parecia-lhe mais pequena do que a antiga onde crescera e brincara quando criança.
Iam longínquos os tempos!
Dos seus antepassados, mantinha vivas as lembranças de um sétimo avô que viera nas campanhas do exército de Tariq Zihad. Esse ano de 711, no calendário cristão, marcou o início da chegada dos povos berberes a este lado do canal, tornando-os senhores da península do grande al-Andaluz.
Desse avô distante, de que recebeu o apelido de família mais o da cidade conquistada, guardou ele as vidas contadas que fizeram do nada o princípio de tudo: ibn Darraj al-Castalli, ou seja, filho de Darraj de Cacela. O nome, a terra e a história, herdeiras e guardiãs de um passado que gerações sucessivas prolongaram por séculos adiante.
Naquele tempo, seguia a vida tranquila na pacatez da cidade, quando, pelo seu talento de poeta e homem da escrita, viria a ser eleito entre os melhores para glorificar os feitos e conquistas de Abdul Amir Almançôr, o novo governador do al-Andaluz. Como cronista da corte e do califado de Córdoba, percorreu o império árabe, gozando, por isso, dos privilégios de uma vida plena e feliz, interrompida, anos depois, por um exílio forçado e triste em Ceuta. E é agora dali que, no barco da nostalgia, empreende a viagem possível de regresso à sua aldeia de infância. Na distância e ao alcance de um olhar de saudade.
Recorda, como se fosse hoje, que no seu tempo, Castalli se transformara num dos faróis de cultura e riqueza do Garb al-Andaluz. Era a terceira cidade em prestígio logo a seguir a Xilbe – a Bagdad do Ocidente -, e à capital Ukxunuba – a antiga Ossónoba romana.
Segundo o historiador Ahmed Tahri “ali nasceram ilustres poetas e intelectuais que deixaram a sua influência no pensamento, na gramática, na poética e na literatura da época”. O seu esplendor “ultrapassou as fronteiras do al-Andaluz, abarcando o Dar-al-Islam, tanto do oriente como do ocidente”.
Ibn Darraj al-Castalli, foi – diz o investigador – “o maior do seu tempo” e embora poeta oficial de Almançôr, o seu brilho de pensamento e de expressão poética, “tornou-o porta voz e inspirador de uma geração de autores que floresceram no império islâmico” e em todo o território peninsular.
Com a derrocada do califado e a dispersão do poder em pequenos reinos e taifas um pouco por todo o al-Andaluz, o domínio árabe mudou de mãos, e quando os cristão ali chegaram, Cacela ou Castalli já não era a cidade dos seus anos de menino. Todavia, ainda que transformada numa modesta povoação islâmica, soube preservar na sua alma identitária, a cultura e os valores árabes do al-Andaluz mais profundo.
Hoje Cacela, na sua pequena dimensão, “quando o tempo a vê em todo o seu esplendor/Vê tudo o que poderia sonhar de mais belo”, escreveu o poeta Abu Amer: o mar, o sol, a luz, a cor, a terra. E em redor do largo, lá estão a igreja, a cisterna, as casas térreas, a casa do pároco, a fortaleza e a memória do pelourinho que ali havia.
E Sophia eternizou-a assim: “As praças fortes foram conquistadas/por seu poder e foram sitiadas/ as suas cidades do mar pela riqueza/ porém Cacela/ foi desejada só pela beleza”.
Passados tantos séculos, robusta como a fortaleza que foi, ali permanece imperturbável perante a pressão e as ameaças de novas ‘invasões’. Cacela é um “milagre e poesia”, diz o poeta José Carlos Barros, fazendo eco da voz que ali ressoa vinda do outro lado do mar: “… Nos muros de Cacela um poeta de longe vem com as ondas/ para morrer para morrer para morrer”.
Referências e citações: “Cacela e o seu Poeta, Ibn Darray al-Qastalli na História e na Literatura do al-Andaluz Amhed Tahiri, CM VRSA e Fundação Al Idrise, 2009; José Carlos Barros, idem; “Livro Sexto”, Sophia de Mello Breyner Andressen.