Há algo de muito sinistro na sociedade de hoje, quando abundam exemplos de como a corrupção e a falta de escrúpulos compensam, enquanto valores como a honradez e a probidade perdem terreno a cada dia que passa, em proveito daqueles que conhecem as manhas de como contornar a lei, subverter as regras, contorcer princípios, escarnecer da ética.
O cidadão comum, o zé povinho bordalês, o raia miúda mexilhão maioritário nesta democracia invertida, percebe a Justiça como uma dicotomia para fortes e para fracos, em função da carteira de cada um. O sistema ultra garantístico consente a liberdade para uma cambada de crápulas, saltitando de recurso em recurso até à prescrição final. Os tráficos mudaram. Onde ontem se traficavam mercadorias, hoje traficam-se seres humanos (novas escravaturas, prostituição, migrantes) e influências, em mercê de subornos, favores, e comissões omnipresentes.
O cidadão comum, o zé povinho bordalês, o raia miúda mexilhão maioritário nesta democracia invertida, percebe a Justiça como uma dicotomia para fortes e para fracos, em função da carteira de cada um
Cinquenta anos passaram. Quase meio século depois da revolução que prometeu mudar a vida dos portugueses, muita coisa mudou de facto. Materialmente, para melhor na maioria dos casos. Embora com todas as deficiências que os noticiários mostram, a cobertura das estruturas de Saúde, de Educação ou Segurança Social é incomparavelmente maior que em 1974. Nesse tempo, não se tratava um quilo de resíduos domésticos ou de qualquer natureza. Campeavam lixeiras a céu aberto. Existia meia dúzia de quilómetros de auto-estrada, e uma rede viária incipiente. A água, o saneamento básico, a electricidade ao domicílio não chegavam a uma parte importante do território e das populações. Quem imagina hoje o que seria viver assim? Porquê, então, este sabor a frustração, a ideais traídos, a sonhos enterrados, dos sobreviventes daquele dia 25 do mês de Abril de sua graça, que ainda recordam a alegria colectiva que inundou o país? Que surfaram numa onda de esperança por dias melhores? Neste longo entretanto o número de casas duplicou em Portugal, mas comprar ou alugar hoje uma habitação condigna passou a ser impossível para jovens casais, um quarto que seja para estudantes. Ou para reformados e trabalhadores acorrentados a salários mínimos, e classes médias asfixiadas por cargas fiscais incomportáveis, tais são os preços do mercado.
O país investe montantes consideráveis na formação de jovens quadros, portadores de canudos de licenciaturas, mestrados e doutoramentos que cedo emigram em busca de melhores oportunidades. Um êxodo! Ao mesmo tempo, Portugal é uma porta aberta à importação desregulada de mão de obra sem qualificação. Um absurdo! As taxas de desemprego atingiram os níveis mais baixos de sempre, mas quase metade dos portugueses são oficialmente pobres ou estão à porta da pobreza de mão estendida ao assistencialismo do Estado ou dependentes da caridade de outros cidadãos. É nesta desigualdade social galopante que reside o maior falhanço da nossa democracia. Corre-se o risco de ela se sobrepor ao muito que de positivo aconteceu no último meio século.
A poucos meses da passagem dos cinquenta anos do 25 de Abril, pouco ou nada se fala em comemorar a efeméride que mudou as nossas vidas. Havia um comissário que passou a ministro. E um general que passou a pasta. Criou-se uma comissão. O silêncio não é bom conselheiro. Pode perder-se a oportunidade de fazer um balanço sério, despartidarizado, sem azedumes saudosistas nem proprietários do 25 de Abril. Ele pertence aos que lá estavam à data, e aos que vieram depois. Ou seja, todos nós. E se o inventário histórico é importante, melhor ainda seria o sobressalto cívico de que o país precisa daqui para a frente, para fazer o que não foi feito, Abrunhosa dixit.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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