Em miúdo dizia querer ser veterinário quando fosse grande. Depois dizia que queria ser biólogo marinho. Isso passou, mas o fascínio pela vida animal, selvagem, manteve-se (e tive a sorte de viver no Botsuana, um dos países onde mais se filmam documentários sobre a vida selvagem).
Frédéric Lenoir, autor de quem já tinha lido O Milagre Espinosa e Viver num Mundo Imprevisível, também publicados pela Quetzal, volta a evidenciar-se como um filósofo atual, e por vezes controverso, cujo pensamento me dá muito prazer conhecer, por escrito.
Lenoir propõe nesta pequena obra, que como o título indica é uma carta escrita por um humano que toma diretamente como destinatário os animais, a definição de um nível ético superior que defenda o bem-estar dos animais. O autor, aliás, é cofundador da sociedade SEVE (Saber Estar e Viver em Conjunto) e fundador da Association Ensemble pour les animaux.

Doutorado em Literatura na UAlg
e Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)
O autor deixa aos animais e a nós um texto tão comovente quanto acusativo, em que denuncia os crimes que todos os dias cometemos contra animais
Carta Aberta aos Animais chega às livrarias com tradução de Sandra Silva. Num registo sóbrio, contido, ainda que muitas vezes ultrajado e envergonhado, o autor deixa aos animais e a nós um texto tão comovente quanto acusativo, em que denuncia os crimes que todos os dias cometemos contra animais. Há uma comparação, que pode parecer extremista, entre a dessensibilização daqueles que trabalham nessa indústria da morte que são os matadouros e esse outro processo de carnificina industrial que foram os campos de concentração.
Afinal, a origem etimológica da palavra pecuária relaciona-se com dinheiro (pecus), e é por isso que, por exemplo, as porcas (mais conhecidas como carne de transformação) são mantidas em gaiolas por meses apenas com o objetivo de procriar até serem transformadas em carne de abate. Os matadouros são assim um espaço onde o mal é impunemente perpetrado (são abatidos cerca de 60 milhões de animais por ano), quando aquilo que distingue o homem do animal é justamente a ética, o seu sentido de responsabilidade face aos outros seres, e ao planeta.

«Não é difícil perceber por que motivo estes locais são tão impenetráveis como as centrais nucleares ou as bases militares de alta segurança: qualquer um que visite estas linhas de abate certamente nunca mais terá vontade de consumir carne de criação, tanto tradicional como industrial, visto que todos os animais acabam da mesma maneira.» (p. 35)
Frédéric Lenoir nasceu em Madagáscar em 1962. É professor na prestigiada École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris; é filósofo, sociólogo e historiador das religiões. A Quetzal publicou, em 2019, O Milagre Espinosa e, em 2021, Viver num Mundo Imprevisível. É ainda autor de inúmeras obras – ensaios e romances – traduzidos numa vintena de línguas.
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