Estávamos em outubro do ano que agora terminou quando me desloquei pela primeira vez à Ilha da Fuzeta. Faltavam dez minutos para o meio dia e o ferry que faz a ligação entre a vila e a ilha recebia já os passageiros. Ouvia-se bem a canção, “Baile de Verão”, de José Malhoa, que ecoava na cabine do barco, de tão reduzido que era o fluxo de pessoas que continuava a fazer o trajeto.
Em dezembro regressei à ilha, mas não pude lá chegar pela mesma via de dois meses antes. É que os barcos-carreira só asseguram a ligação entre a Fuzeta e a ilha a partir de maio e apenas até outubro. Descartada a opção de chamar um Aqua-Taxi que me levaria à Praia da Fuzeta (Mar) por um preço mais elevado, a solução que restava era aceder ao areal pela outra extremidade da ilha, na Armona.
Aquele sábado de dezembro estava ventoso e foram poucos os que embarcaram em Olhão rumo à Armona. Uma vez na ilha, percorri a passadeira de pedra que une o cais ao passadiço que, por sua vez, nos leva até à Praia da Armona. No entanto, a meio da passadeira tive de fazer um desvio. É que por baixo desta está a ser construída uma rede de esgotos, que vai substituir as mais de 800 fossas sépticas que servem atualmente a ilha.
Há anos que esta intervenção era esperada, algo que nunca chegou a acontecer na zona da Fuzeta, na outra ponta da ilha, que está a cerca de 10 quilómetros da Armona, a distância que tive de percorrer a pé pelo areal.
As casas de veraneio e as férias de Zeca Afonso
O difícil acesso à Praia da Fuzeta após a época balnear deixa-a deserta. Foi assim que a achei em outubro e também em dezembro. Contudo, as imagens de satélite mostram que até ao início de 2010, no inverno, a ilha não se resumia à conjugação do mar, da areia e da ria, tal como acontece nos dias de hoje.
As casas de veraneio eram o legado da presença humana na ilha. No total havia 77 casas. As primeiras construções chegaram à ilha algures nos anos 30 e 40 do século passado. Eram feitas de colmo, uma espécie de vegetação característica daquele local. Nos anos 60 apareceram as casas de madeira com cobertura e depois do 25 de abril de 1974 registou-se um aumento da construção de casas na ilha, utilizadas sobretudo como segunda habitação.
Zeca Afonso não tinha casa ali, mas era lá que passava as suas férias. “A minha infância era passada na ilha durante o verão com amigos e recordo-me que o Zeca Afonso gostava imenso deste local”, revelou o antigo presidente da Junta da Fuzeta, José Brás, em declarações ao Diário de Notícias em março de 2010. “Era uma pessoa muito simples e fazia ali muitas noitadas com a sua viola”, referiu ainda ao mesmo jornal.
Prova da ligação do artista à Fuzeta foi a canção que dedicou ao bar que frequentava na vila. “Entra naquele fiorde / Onde a terra encobre o mar / Se queres comer como um lorde / É no Escandinávia-bar”, cantava Zeca Afonso na música que partilhava o nome do estabelecimento.
O também autor da canção que serviu de senha no 25 de abril faleceu em fevereiro de 1987, não chegando a ter a oportunidade de pisar o areal da Fuzeta tal como o vemos hoje: mais estreito e sem casas.
As tempestades de 2010
Enquanto se celebrava a passagem para o ano de 2010, a Ilha da Fuzeta não estava certamente preparada para o que aí viria. O primeiro sinal da natureza estava dado com as tempestades que em dezembro tinham chegado à ilha. Entre janeiro e março, as ondas de seis metros ligaram o mar à ria num canal com 150 metros, abrindo uma nova barra. Com as ondas foram desabando as casas e a cada dia que passava, a imprensa dava conta de novas destruições.
Das 77 habitações, ficaram de pé apenas 27, segundo a informação avançada pelo Expresso. A natureza acelerou a burocracia que impedia a Sociedade Polis da Ria Formosa de avançar com a demolição de todas as casas da Ilha da Fuzeta. A retirada do entulho foi também agilizada por aqueles que à noite se deslocavam à ilha para furtar o recheio das casas destruídas.
Numa reportagem publicada pelo Expresso em abril do mesmo ano, Margarida Santana, proprietária de uma destas casas, lamentava que os ladrões “depenaram tudo e até arrancaram as forras de alumínio”.
As poucas casas que resistiram ao inverno rigoroso foram destruídas no final de abril desse ano, dado que um edital publicado exigia que os proprietários abandonassem as mesmas até ao dia 23 desse mês.
Valentina Calixto e o fecho da barra natural
O nome Valentina Calixto há de ter sido um dos mais pronunciados em 2010. Falamos da figura que assumia nesse ano a presidência da Sociedade Polis da Ria Formosa. É que a par da demolição das casas, havia uma outra questão por resolver: a barra que as ondas abriram e que dividiu a ilha em dois. Classificado como um “fenómeno natural raro que só acontece de 50 em 50 anos”, Valentina Calixto decidiu fechar a barra natural para abrir uma nova.
Citada pelo Público no final de 2010, Valentina Calixto justificou o fecho da barra formada naturalmente, esclarecendo que esta “não oferecia segurança, não oferecia a possibilidade de compatibilizar os usos que pretendemos para este local com a segurança dos banhistas”.
A decisão não foi consensual, sobretudo porque Sebastião Teixeira, à época membro da Administração Regional Hidrográfica, não concordava com o fecho da barra criada naturalmente. “Se a ideia era abrir uma barra e se ela abriu naturalmente, não faz sentido estar a abrir outra porque para abrir outra tinha que se fechar esta e fechar uma barra é muito difícil”, afirmou ao Público.
A 1 de julho foi hasteada a Bandeira Azul na Fuzeta
Apesar de na ótica de Sebastião Teixeira ser uma tarefa “difícil”, a barra foi efetivamente encerrada e o entulho das casas foi recolhido. A 1 de julho de 2010, a época balnear começou e a Bandeira Azul foi hasteada pela primeira vez na Praia da Fuzeta (Mar).
O turismo regressou, mas agora a ilha estava diferente. Ainda assim, o plano traçado não estava ainda concluído. Em outubro foram construídos os apoios de praia e os passadiços sobre elevados para preparar a época balnear seguinte e em novembro deu-se a abertura da nova barra.
A nova barra e as dificuldades de navegação
Quase um ano depois da chegada das primeiras tempestades à ilha, a nova barra foi finalmente inaugurada. Estávamos em novembro de 2010. Aberta a nova barra, os problemas de assoreamento chegaram com os pescadores a queixarem-se da dificuldade de navegação.
Nessa altura, a então presidente da Sociedade Polis salvaguardava em declarações ao Público que “há um processo de adaptação da própria barra ao sistema que vai evoluir, e vamos averiguar a sua funcionalidade”.
A verdade é que dias depois da inauguração, a nova barra teve de ser sujeita a uma segunda intervenção. Foram feitas mais dragagens, assim como um reforço do cordão junto à barra.
Hoje, ao fim de 14 anos, a nova barra que já não é assim tão nova lá permanece. O assoreamento continua a ser uma preocupação, contudo, quando lá fui a maré estava cheia e, na ausência dos bancos de areia que permitem atravessar a ria a pé, tive de fazer mais 10 quilómetros até à Armona para voltar a apanhar o barco. Dentro de alguns meses o verão está de regresso e com a sua chegada a Ilha da Fuzeta volta a ganhar vida. No entanto, para já, o areal terá mais umas semanas de repouso.
- Por Miguel Frazão
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