Hans – Sob o Peso das Rodas, de Hermann Hesse, com tradução de Paulo Rêgo, é o segundo romance do Nobel alemão, e um dos mais importantes autores do século XX – e um dos meus preferidos, talvez porque partilhamos a mesma data de nascimento (menos no ano). A sua obra tem vindo a ser integralmente publicada pela Dom Quixote.
Depois de Peter Camenzind, o seu primeiro romance, que data de 1904, surgiu Hans – Sob o Peso das Rodas. Um título um pouco desconcertante, enigmático talvez (mas que depois se torna claro), para uma narrativa em boa parte autobiográfica. A narrativa segue a vida do jovem Hans, um rapaz inteligente e promissor que tenta corresponder às exigências e ambições que pai e professores nele projetam constantemente, em vésperas de realizar um exame que se afigura decisivo.
Um romance que, como é usual na obra de Hesse, mesmo numa idade tão incipiente como a do jovem Hans, explora o dualismo entre a vida ativa e a atitude contemplativa: “ficou pensativo e triste, pois sentia já bem distantes as alegrias da meninice, tão belas, tão livres e tão sem maneiras” (p. 18).
É curioso, e ilustrativo, o modo como o jovem Hans, confrontado com o momento definitivo de fazer o exame de ingresso ao seminário sente uma vontade indómita de voltar a pescar ou simplesmente passear pelo campo e deixar-se preguiçar deitado nos tapetes de vegetação.
O livro foi escrito na terra natal do autor e conduz-nos a um ambiente mais rural, menos citadino.
“O outono estava a revelar-se mais belo do que nunca, pleno de tons suaves, amanheceres argênteos, meios-dias banhados de sol e cor e noites igualmente claras. Os montes, ao longe, adquiriam um profundo tom de veludo azul, os castanheiros refulgiam em tons amarelo-dourados e do cimo de muros e cercas pendiam as videiras de tons purpúreos.
Dominado pelo desassossego, Hans parecia fugir de si mesmo. Durante o dia percorria as ruas da cidade e os campos vizinhos, tentava evitar o contacto com as pessoas, pois achava que toda a gente se aperceberia de imediato dos seus padecimentos de amor. À noite vagueava pelas ruelas, ficava a observar todas as raparigas que por ele passavam e seguia furtivamente todos os pares amorosos, ainda que isso lhe ficasse a pesar na consciência.
Com Emma tinha a sensação de ter estado perto de usufruir de toda a magia da vida e do que esta tem para oferecer de apetecível, porém, pouco depois, tudo isso por malícia lhe fora negado.”
Uma obra que abre uma outra perspetiva sobre a vida, profundamente reflexiva mas sobretudo eivada de uma profunda espiritualidade. Quando Hans começa as aulas no seminário teológico protestante, o “grande convento cisterciense” na região suábia é descrito como um reino à parte, “isolado do mundo e escondido entre colinas e bosques (…) de modo que esses espíritos jovens e recetivos possam estar rodeados de beleza e tranquilidade” (p. 68).
Neste romance, como aliás acontece com outras obras suas, o autor desdobra-se em personagens que possuem alguns traços autobiográficos. Por vezes, o próprio nome das personagens é revelador desse desdobramento, como acontece com Hermann Heilner (em que não só se mantém o primeiro nome como as iniciais correspondem).
O título do livro remete para o peso do sistema educacional (e civilizacional) repressivo e uniformizador na forma como pretende moldar o carácter de cada um, numa formatação que por vezes pode mesmo atropelar a individualidade, o eu, a vida humana…
Hermann Hesse nasceu a 2 de Julho de 1877, em Calw, na Alemanha, e morreu a 9 de Agosto de 1962, em Montagnola, na Suíça.
Distinguido, em 1946, com o Prémio Nobel da Literatura, tornou-se uma verdadeira figura de culto, uma referência universal ancorada na exaltação que faz do indivíduo e na celebração de um certo misticismo oriental.
Peter Camenzind, o seu primeiro romance, data de 1904. Uma visita à Índia fê-lo descobrir uma cultura e modos de sentir que o fascinaram: Siddhartha (1922) foi o resultado prático dessa experiência – é o seu livro mais lido em todo o mundo e um dos grandes clássicos da literatura universal. Durante a Primeira Guerra Mundial, refugiou-se na Suíça, país neutro, onde adquiriu a nacionalidade em 1923.
Entre os seus romances, incluem-se O Lobo das Estepes (1927), Narciso e Goldmundo (1930) e O Jogo das Contas de Vidro (1943).
Qualquer um dos seus livros é prodigioso.
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