O direito à habitação encontra-se consagrado no art.º 65 da Constituição da República Portuguesa, que institui que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
A operacionalização desse direito incumbe ao Estado, seja por via direta, seja em articulação com regiões autónomas, autarquias locais, privados, ou grupos da sociedade civil devidamente organizados e constituídos.
Ao contrário de outros direitos fundamentais, como a saúde ou a educação, que há mais de duas décadas têm a sua Lei de Bases publicada, a habitação só recentemente, a 3 de setembro de 2019, viu a sua Lei de Bases ser Publicada em Diário da República (Lei 83/2019).
Talvez pelo assumir tardio do direito à habitação, por parte dos vários Governos, a questão tem tido intervenções intermitentes e, conforme bem percebemos, claramente insuficientes.
O abandono das políticas de habitação levou ao aumento das necessidades, tendo-se a situação agravado nos últimos anos por diversos fatores
A exceção foi o PER – Programa Especial de Realojamento, iniciado em 1993, e implementado ao longo das duas décadas seguintes, sendo, desde a instauração do regime democrático, o maior programa de habitação social implementado. O PER, que se dirigiu às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, tinha por objetivo a erradicação de barracas, e realojamento dos seus moradores, num total estimado de 150 mil moradores, tendo disponibilizado cerca de 50 mil habitações.
No entanto, seja por limitações financeiras dos municípios, no início do século 21, seja pela crise e recessão económica de 2010-2012, a habitação foi saindo gradualmente da agenda política.
O abandono das políticas de habitação levou ao aumento das necessidades, tendo-se a situação agravado nos últimos anos por diversos fatores como sejam a falta de oferta, o aumento do preço dos fatores produtivos com o consequente aumento do preço de venda, o aumento dos valores do arrendamento ou a subida das taxas de juro, colocando muitas famílias em situação de grave dificuldade no acesso à habitação, o que fez com que o tema voltasse a entrar na agenda política em força.
Em 2017/2018, num levantamento realizado pelo IHRU – Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, foram identificadas 26.000 famílias em situação de grave carência habitacional. À data, pensava-se que aquele número pecaria por escasso. Hoje não existe qualquer dúvida que o número de famílias a necessitar de apoio público para acesso à habitação será claramente superior.
As rendas
Nos últimos anos, de acordo com o INE, o valor mediano das rendas para novos contratos de arrendamento tem vindo a aumentar de forma significativa, a um ritmo superior ao do aumento dos rendimentos das famílias.
Desde o 1º trimestre de 2020, o valor das rendas aumentou quase 20% em Portugal. No Algarve esse aumento foi de 11%.
Entre 2020 e 2022, o Algarve apresentou sempre valores de renda mais elevados, quando comparado com o país. No 3º trimestre de 2022 os valores no Algarve (7,49 euro/ m2) eram 14% superiores aos do país (6,55 euro/m2).
Os juros
De acordo com o INE, em janeiro de 2023, a taxa de juro associada aos contratos de crédito à habitação, foi de 2,217%, valor que, comparado com os meses homólogos desde 2010, só havia sido superior em 2012 (ano de entrada da Troika em Portugal), com 2,718%. Desde então, a taxa de juro vinha descendo gradualmente, chegando mesmo a ser inferior a 1%, em 2021 e 2022.
O ano de 2023 trouxe, assim, um aumento abrupto nos encargos familiares, deixando menos rendimento disponível, por via do aumento das taxas de juro.
Para as famílias que pretendem adquirir habitação própria, esse objetivo torna-se mais difícil quando os juros estão mais elevados.
Por outro lado, o agravamento da taxa de juro surge num momento em que o valor da dívida média das famílias nos contratos de crédito à habitação regista uma tendência de crescimento. Esta tendência iniciou em 2017, apresentando o valor mais elevado de sempre em 2023 com 62.357€.
A conjugação destes dois fatores, aumento do valor médio dos créditos e das taxas de juro coloca pressão sobre o rendimento disponível das famílias, deixando-as numa situação de maior dificuldade económica e social.
Valor de venda das habitações
A subida significativa do valor da venda também dificulta o acesso das famílias à habitação.
Entre 2019 e 2022, a subida do valor mediano de vendas das habitações, em Portugal e no Algarve, foi superior a 40%.
Esta subida pode ser justificada por fatores como o aumento dos fatores produtivos (custo dos terrenos, dos materiais, da mão de obra, custos de contexto).
Entre regiões registam-se disparidades significativas nos valores de venda, com o Algarve a apresentar preços por m2 quase 60% superiores aos do país.
Em grande parte, a subida generalizada dos preços resulta da lei da oferta e da procura, visto existir mais procura que oferta o que, inevitavelmente, faz aumentar os preços.
De acordo com o INE, na última década foram construídos apenas 110.784 edifícios, o que corresponde a 3,1% do parque habitacional.
Face à dimensão do problema, não existem dúvidas que a sua resolução demorará bastante tempo. Face à sua gravidade, importa adotar medidas que possam produzir resultados imediatos.
De acordo com o Censo 2021 do INE, em Portugal existiam 5 981 482 de alojamentos, dos quais 69,4% se encontravam ocupados como residência habitual.
Mais de 1,1 milhões de alojamento destinam-se a segunda habitação. E o número de alojamentos vagos supera os 723.000, sendo estes os visados no pacote “Mais Habitação” do Governo, que pretende obrigar os proprietários a colocá-los no mercado de arrendamento.
E a propósito da discussão gerada sobre o estado dos alojamentos, convém referir que, de acordo com o INE, a maioria dos edifícios (64,2%) não necessita de reparações e apenas 4,6% necessita de reparações profundas.
Como primeira tentativa para resolver o problema da falta de habitação, em 2018 o Governo lançou o Programa 1º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, que visa apoiar a promoção de soluções habitacionais para pessoas que vivam em condições habitacionais indignas e que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada. Este programa prevê como apoio aos promotores de soluções habitacionais comparticipações financeiras não reembolsáveis e bonificação da taxa de juro de empréstimos.
O PRR – Plano de Recuperação e Resiliência veio trazer um impulso significativo às políticas de habitação municipais, ao alocar verbas ao setor, financiando a 100% novas construções ou reabilitação, desde que os Municípios candidatos à medida disponham de uma Estratégia Local de Habitação aprovada, o que já acontece na larga parte dos Municípios portugueses. No entanto, a sua aplicação levará tempo. E não é certo que haja tempo e capacidade para executar e utilizar essa verba que, de acordo com as regras da Comissão Europeia, terá se ser executada até 2026.
Mas ainda que essa verba venha a ser executada na totalidade, não responderá à totalidade das necessidades de habitação existentes. E há famílias que não podem esperar o tempo necessário à construção dessas novas habitações.
O Governo e os Municípios estão, pois, colocados perante o desafio de resolver o problema de habitação de muitas dezenas de milhares de famílias.
A médio prazo importa:
- Utilizar depressa e bem os fundos do PRR destinados a habitação;
- Identificar terrenos, flexibilizar as regras de utilização dos solos, permitir a construção em quantidade de fogos de habitação a custos controlados, com custos de contexto mais baixos.
No curto prazo é necessário:
- Implementar soluções como o apoio financeiro ao arrendamento, que permitam uma resposta imediata às famílias em situação mais difícil;
- Criar incentivos e confiança nos proprietários, seja por via fiscal, seja através da garantia de uma rápida resposta da justiça quando necessário, para que parte dos 700.000 fogos vagos sejam rapidamente colocados no mercado pelos seus proprietários, de forma voluntária.
Pelo caminho importa planear, para que as respostas no mercado habitacional surjam alinhadas, em tempo e quantidade, com as necessidades. As Cartas Municipais da Habitação, consagradas na Lei de Bases da Habitação, são o instrumento adequado para isso, ao permitirem a articulação entre o Plano Diretor Municipal (PDM) e demais instrumentos de gestão do território que dão indicação sobre os locais e capacidades construtivas; com as Estratégias Locais de Habitação, que sinalizam as necessidades de habitação detetadas no território, e com as demais estratégias e políticas dos municípios nesta matéria.
O ponto de partida do mercado habitacional é, pois, bastante complicado para as famílias e carece de respostas imediatas.
Quanto ao ponto de chegada, só o tempo dirá se conseguiremos atingir os objetivos desejados. A forma de lá chegar não será fácil, mas será seguramente muito discutida, conforme se percebeu nos últimos dias…