Bastou a primeira colher da musse de chocolate vegan do Eduardo e, por uns instantes, o paladar dominou todos os meus sentidos. Quando voltei a abrir os olhos, deparei-me com uma jovem e bela mulher, que me resultava familiar, mas não conseguia identificar de onde a conhecia. Tinha um rosto angelical e o cabelo longo e arruivado descia em suaves ondas sobre as costas. Dela emanava uma calma, uma felicidade serena que, conjugada com a sua aparência, me fazia viajar para um filme de época: imaginava-a de vestido longo a bordar junto à janela. Na sua presença silenciosa havia qualquer coisa de irresistível.
A Lia notou o meu interesse e, sem demora, apresentou-nos: conheces a Anna Pixner? Devo ter ficado de olhos esbugalhados com o cérebro em sérias dificuldades para processar a informação. Então aquela beleza clássica pertencia, nada mais nada menos, que à desportista radical Anna Pixner! A skater mais rápida da Áustria e a número 10 no ranking mundial de Downhill Skateboarding ― (Skate Montanha Abaixo)!
A empatia foi mútua, e a Anna concedeu-me esta entrevista.
P – Sei que a Ericeira é a tua casa, já há 2 anos. Podes dizer-me como é que isso aconteceu?
R – “Aconteceu” é, de facto, uma boa palavra. Parti o punho e tive receio de que o verão austríaco já tivesse terminado quando eu recuperasse. Vim visitar uns amigos e pensei que podia ficar um mês, e tentar recomeçar com o skate aqui na Ericeira. Mas depois encontrei este sítio ― Omassim ― e comecei a trabalhar. A Lia, mostrou-me várias opções, incluindo uma caravana na qual eu podia viver, junto à horta. Foi perfeito! Sob a orientação do Eduardo, preparava os pequenos almoços de manhã, e praticava skate a tarde toda. Fiquei apaixonada por esta vida! Incluindo acordar no meio de um campo de vegetais (risos).
A única coisa que me mantinha na Áustria eram os meus estudos. Tinha começado a tirar um curso de Mestrado em “Gender Culture and Social Change”. Mas com a Covid passou a ser possível fazer tudo online.
P – Gostava de saber um pouco mais sobre esse teu interesse em Estudos de Género. Parece que tu não abandonaste o tema, apenas decidiste abordá-lo de um ângulo diferente.
R – Eu continuo a adorar estudar sobre este assunto e, às vezes, sinto saudades das aulas na faculdade. Porém, dei-me conta de que vendo o que acontece na vida real e, sobretudo, devido ao desporto a que me dedico, talvez eu tivesse a possibilidade de mudar alguma coisa. Decidi agir em vez de apenas teorizar, pensar acerca das coisas e escrever.
“Se não vemos mulheres fazer coisas extremas, crescemos com a ideia de que são incapazes de tal!”
P – Podes precisar um pouco mais sobre este assunto? Que mudanças gostarias de alcançar?
R – Interesso-me sobre as diferenças culturais. Por exemplo: porque é que os desportos radicais, como o Skate Montanha Abaixo a que me dedico, são dominados pelo género masculino? Ou porque é que tantas mulheres nem sequer se atrevem a tentar? Por que partem do princípio de que não seriam capazes de fazer estas coisas? Pergunto-me se isto não tem muito mais que ver com a pressão social do que com a diferença de género. Se não vemos mulheres fazer coisas extremas, crescemos com a ideia de que são incapazes de tal! O contexto em que vivemos influencia-nos imenso! Verifico isto constantemente ao viajar para as corridas das Copas do Mundo. A maioria das mulheres que praticam este desporto são europeias ou norte-americanas. Elas sabem que esta possibilidade existe. Noutros lugares do mundo talvez isto não se mencione sequer! Para mim esse é o único motivo pelo qual o nível da prestação das mulheres, em alguns países, ainda fica um pouco aquém. Para mim é como uma metáfora.
P – Uma metáfora?
R – Sim. Fez-me tomar consciência de que em muitas coisas não existe, ainda, igualdade. E eu estava convencida que sim! Eu nasci num país europeu, desenvolvido, com muitos privilégios que nem sabia que tinha.
“Talvez nem quisessem esse destino, mas nem lhes ocorria que a vida poderia ser diferente”
P – Podes dar-me algum exemplo que te tenha impressionado?
R – Uma das minhas primeiras competições internacionais foi nas Filipinas. As atletas locais tinham imenso talento, as suas capacidades eram incríveis! Mas o seu equipamento era muito mau. Falando com elas apercebi-me das diferenças abissais entre nós. Algumas estavam quase a completar 18 anos e pensavam que já não iriam competir mais porque era tempo de casarem e terem muitos filhos. Era como se estivessem programadas. Talvez nem quisessem esse destino mas nem lhes ocorria que a vida poderia ser diferente.
P – Há quanto tempo praticas este desporto radical?
R – Há 10 anos.
P – Então, começaste muito nova?
R – Sim. Eu tinha 15 anos.
P – E és a mulher mais rápida da Áustria, neste desporto, e uma das mais rápidas do mundo?
R – Sim, mas… Aí está… Não sei se isto é muito justo. Não sei se há alguma mulher em algum lugar do mundo, muito mais rápida do que eu… Desconhecida e, obviamente, não contemplada no ranking mundial.
P – Sei que os sponsors andam de olho em ti. Constou-me que tens um pensamento muito interessante a este respeito…
R – Na verdade, esse mundo dos sponsors sempre me desagradou bastante. É que se trata, na maioria das vezes, de vender a tua imagem. Sendo mulher, não tem tanto a ver com as tuas capacidades…
P – Como assim?
R – Por exemplo, quando eu comecei neste desporto, era a única mulher. Os meus companheiros eram todos rapazes. Eu rapidamente comecei a ter sponsors e alguns deles, que eram muito melhores que eu, continuavam sem sponsors durante anos! Então tornei-me bastante céptica. E duvidei muito sobre se devia aceitar essas ofertas ou não. Porquê eu e não o meu amigo que é muito melhor do que eu? É só porque sou mulher e posso atrair mais atenção? Nunca percebi estas diferenças entre homem e mulher neste desporto!
P – Compreendo o que dizes mas, por outro lado, os sponsors são necessários para teres dinheiro para frequentar todas estas competições internacionais e ter bom equipamento, certo?
R – Sim… Tenho aprendido bastante.
Percebi que existem muitas formas de lidar com isto. Também compreendi que não me podia esquivar dos media, que era necessário estar em frente da câmara.
“Sou uma atleta e não uma modelo barata!”
P – Explica-me lá então, de que é que gostas e de que é que não gostas em relação aos media.
R – Por exemplo, há uma série de marcas de roupa, de lifestyle, que procuram pessoas como eu. Só querem que pose para a câmara. Pretendem fotografias da minha cara ou do meu corpo. Talvez com um skate debaixo do braço… Não lhes interessa filmar um vídeo em que mostro as minhas habilidades, em que arrisco a minha vida. Fico indignada! Não sou vista como uma atleta, mas como uma modelo barata. Eles só mandam alguma roupa, nem sequer pagam pelas fotografias!
Este é um dos casos em que há grandes diferenças de tratamento entre homens e mulheres. Com os homens os sponsors querem vídeos e fotografias que mostram a acção. Connosco, confundem-nos! Somos mulheres atletas, tratam-nos como modelos.
P – E tu decidiste que não te iriam confundir! Como conseguiste isso?
R – Basicamente, só faço as coisas que me sinto confortável fazer. Essa é a minha principal linha orientadora. Estes são os meus valores. Geralmente, não me sinto confortável a tirar fotografias nas quais não estou a andar de skate. Neste momento só trabalho com marcas que estão mesmo interessadas no desporto: fabricam skates ou equipamento.
P – E quais são as consequências práticas dessa decisão?
R – Bem, tenho de trabalhar em algum emprego “normal” entre competições. Claro que esses outros sponsors me trariam mais dinheiro… Por exemplo, tive uma oferta para um anúncio publicitário que me teria dado 2000€ num dia, só por “aparecer” com as roupas da sua marca. Seria dinheiro fácil, mas, parece-me estranho. Pagam-me mais para estar para ali com umas roupas vestidas, em vez de fazer aquilo para o qual venho treinando há 10 anos!
“É mais fácil passar a mensagem através de um vídeo- -documentário do que de um artigo académico”
P – Como pretendes passar a tua mensagem?
R – Acho que um bom meio de passar esta mensagem, nos dias de hoje, são curtas metragens, “film projects”. As pessoas parecem captar bem as mensagens dos filmes.
P – Estão a filmar um documentário sobre ti, neste momento?
R – Sim. O Octavio Scholz é o director, Jaz Levis o produtor, e James Harvey o editor. Misturam vídeos de mim no skate com entrevistas. Acho que é muito mais fácil passar a mensagem através destes documentários do que ao escrever um artigo académico. Nos dias de hoje, as pessoas não se interessam por ler algo intenso que possa provocar pensamentos desconfortáveis. Porém, ao visualizar um vídeo de um desporto radical talvez não se esteja à espera de encontrar algo mais profundo e significativo.
A respeito das qualidades internas o documentário também veio ajudar. Eu sempre fui muito introvertida. Acho que toda a gente me subestimava, até ao dia em que comecei com o skate.
P – Olhando para o teu percurso como atleta, torna-se difícil acreditar!
R – Na escola tinha piores notas por não falar. Ao escrever, sim, tinha notas melhores. Espera-se que nos consigamos expressar oralmente bastante bem e rapidamente. Creio que isto é muito injusto. As pessoas introvertidas começam a subestimar-se a si próprias. O skate ajudou-me muito! Primeiro a abrir-me mais, e, segundo, a tomar consciência de tudo isto. Eu tendo a pensar que pessoas mais caladas têm, frequentemente, coisas muito interessantes a dizer. Só precisam que lhes seja dado tempo para se expressarem. Gostaria de empoderar estas pessoas!
“Eu era muito mais medrosa que os meus amigos… Empoderei-me a mim própria!”
P – E está a resultar?
R – Eu tendo a pensar que sim. Tenho recebido imenso feedback nos media e na vida real. Dizem-me que os faço pensar. As pessoas sentem-se empoderadas!
Eu comecei a andar de skate porque gostava, estava longe de imaginar que este desporto se podia transformar num modo de empoderar as pessoas.
P – E como é que o skate te empoderou a ti?
R – Mostrou-me que havia muito mais dentro de mim do que eu acreditava existir. E fez-me ver que eu era mais do que supunha. Eu tinha a imagem de mim própria como uma pessoa muito cautelosa, que não gostava de coisas extremas [risos]. Eu era muito mais medrosa que os meus amigos. Nunca pensei que quereria dedicar a minha vida a um desporto radical!
Comecei muito devagar. No princípio este desporto era apenas o espaço de que eu necessitava para estar comigo, para processar os meus pensamentos, era uma espécie de meditação. Levei algum tempo, não pensei que iria gostar disto porque sou muito cautelosa.
Às vezes dou aulas a outras mulheres que são exactamente como eu era. E acham que não vão gostar deste desporto. Foi incrível para mim descobrir esse lado de mim própria, tomar consciência de que, afinal, gosto de adrenalina e de velocidade. De certa maneira, empoderei-me a mim própria! E continuo a lembrar-me do caminho que percorri. Agora, quando penso que não sou capaz de alguma coisa, simplesmente mudo a minha mente a respeito disso. Passo a pensar: talvez eu ainda não saiba que sou capaz!
“Quando penso que não sou capaz de alguma coisa, mudo a minha mente: talvez eu ainda não saiba que sou capaz!”
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A história de Anna Pixner é um exemplo de empoderamento.
Frequentemente, o conceito de poder é entendido como domínio que se exerce sobre algo ou alguém, tornando-se sinónimo de opressão ou subjugação. Porém, a filósofa alemã, de origem judaica, Hannah Arendt, rejeitou desde cedo este modelo de poder entendido como comando-obediência. No seu livro A Condição Humana propõe a definição de poder como “a capacidade humana não apenas de agir, mas de agir em conjunto”. Existe uma afinidade notória entre esta sua proposta e a concepção feminista de poder como empoderamento. Desta forma, o poder é entendido não como poder sobre, mas como poder para uma capacidade ou habilidade, de se transformar a si mesmo e aos outros.
A definição de poder de Arendt contém ainda em si o foco na comunidade ou, como passou a ser chamado, empoderamento coletivo. É nesta esteira que se insere, por exemplo, a psiquiatra e activista americana Jean Baker Miller. Num artigo intitulado “Mulheres e Poder” afirma que “as mulheres podem querer ser poderosas de maneiras que simultaneamente aumentem, em vez de diminuir, o poder dos outros”.
A escritora estadunidense Starhawk, uma das vozes do chamado eco-feminismo, no seu livro Truth or Dare: Encounters with Power, Authority, and Mystery, afirma estar “do lado do poder que emerge de dentro, que é inerente a nós como o poder de crescer é inerente à semente”. O poder de dentro é uma força positiva, afirmadora da vida e fortalecedora. É também neste sentido que Serene Khader, filósofa e teórica feminista americana, no seu livro Adaptive Preferences and Women’s Empowerment define empoderamento como um conjunto de processos “que aprimoram algum elemento do conceito de auto-direito de uma pessoa e aumentam a sua capacidade de buscar seu próprio florescimento”.
Rápida que nem um relâmpago no seu skate, Anna Pixner põe em prática o que aqui se teoriza e vai empoderando mulheres por esse mundo fora!
Café Filosófico: 21 de Julho de 2022 às 18:30 no AP Maria Nova Lounge Hotel
Inscrições: [email protected]
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico