Quem durante o Estado Novo estudou e guarda manuais da escola primária, não pode deixar de sorrir ao reler as histórias da fundação e construção do Reino, míticas e personalistas, de heróis, santos e guerreiros. As “descobertas”, na concepção romântica, seriam resultado da visão de um Infante que em Sagres fez uma “escola náutica”…
Sagres foi sempre e até tempos recentes um lugar mítico, ventoso, situado frente a um mar de difícil navegação, finisterra desde a Antiguidade, descrita por Estrabão…
No início da segunda dinastia surgiu uma fractura no interior da família dos Avis, entre as elites aristocráticas que desejavam privilégios e terras, e as elites urbanas mercantis, sobretudo de Lisboa e Porto, ligadas á construção naval e ao comércio marítimo.
Não foram apenas lutas de poder, mas acesos debates de filosofias cristãs e prioridades, custos humanos e tributações. Duas visões antagónicas, a conquista de territórios no norte de África permitiria o controlo do Estreito, da pirataria e das rotas comerciais subsaarianas, fundamentava-se no “cristianismo de cruzada”, outra defendendo o comércio através Atlântico, para sul e oriente, influenciada pelo espírito humanista do Renascimento.
A primeira opção tinha no Infante D. Henrique o principal mentor, com influência sobre o rei D. Duarte, seu irmão, de quem recebeu a responsabilidade da defesa de Ceuta. Teólogos criticavam as bulas papais que autorizavam o cruzadismo bélico. Na posição oposta a D. Henrique estavam os irmãos, o Infante D. Pedro das “Sete Partidas”, viajado escritor, autor da “Carta de Bruges” e o Infante D. João, Mestre da Ordem de Santigo.
A “carta de Bruges” de 1426, escrita da Flandres pelo Infante D. Pedro, é uma obra intemporal, reflexão progressista sobre o exercício do poder, expressa valores, normas e aconselha práticas para um informado e justo governo ao serviço da comunidade nacional.
O conflito evoluiu para a guerra civil fratricida que culminou com a morte em Alfarrobeira de D. Pedro, Duque de Coimbra, já então afastado da regência, caluniado pelos inimigos. D. João II, educado pela descendência feminina do Infante D. Pedro, enfrentou e submeteu as casas de Bragança e Viseu, concretizando o programa da expansão e Tordesilhas,
Porque D. Henrique, príncipe poderoso, decidiu viver no Algarve? Terá sido a consequência do desastre de Tanger, o rei e a corte nunca aceitaram a entrega de Ceuta negociada por D. Henrique sem poderes ou legitimidade para o fazer, deixando refém o irmão D. Fernando que morreu na prisão. O “Navegador” desobedeceu às instruções reais e dos militares, só a humilhação evitou o massacre do exército, ficou meses em Ceuta sem voltar ao Reino.
A expansão marítima não começou na dinastia de Avis. Importa conhecer a cartografia antiga com continentes assinalados, os traçados das rotas comerciais de Oriente, da Ásia e África para a Europa, os itinerários de comércio por centenas de portos do Mediterrâneo, a pirataria e o corso, o crescimento do poder naval otomano, o papel de genoveses e venezianos vindos para Lisboa a convite dos reis de Portugal, D. Dinis contratou em 1317 o genovês Manuel Pessagno para Almirante-Mor da armada portuguesa.
A bolsa de mercadores de 1293 foi um seguro para mareantes e no século XIII intensificou-se o financiamento da frota mercantil portuguesa. As rotas terrestres eram substituídas pela via marítima que tornava a circulação de bens mais rápida e barata.
A abertura política das dinastias de Borgonha e Avis envolveu pilotos, marinheiros, geógrafos, mercadores, matemáticos, cartógrafos, botânicos, armadores, desenvolveu as ciências e artes, a integração de mestres qualificados nas universidades.
Foram necessários renovados conhecimentos para navegar o Atlântico, ultrapassado o equador geográfico os pilotos seguiam o Cruzeiro do Sul, usavam tábuas astronómicas para determinar a posição pela altura solar ao meio-dia, estudaram os ventos e correntes.
A experiência da navegação mediterrânica evoluiu, surgiram novos instrumentos náuticos e a revolução na construção naval, a calafetagem a chumbo para resistir ao impacto de correntes revoltas e ondas, ciclones, embates com pedaços de gelos flutuantes,…
As caravelas de vela latina triangular permitiam navegar contra o vento e em águas pouco profundas. A nau representou avanço no transporte de carga, usadas na “carreira das Índias” que saía de Lisboa em Março, transpunha o Cabo da Boa Esperança em Junho regressando em Dezembro. Cada navio transportava 800 pessoas e 600 toneladas de mercadorias. O galeão era a “máquina de guerra” eficaz e a engenharia militar construiu ainda uma rede de mais de cinquenta fortalezas nas costas atlânticas do Índico e Pacífico.
Episódios personalizados e descrições descontextualizados dificultaram o entendimento de muitas gerações sobre as verdadeiras causas e consequências sociais e económicas da expansão, génese da história da colonização e do mundo pós-colonial.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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