RESTOS ELEITORAIS
Já não há campanhas eleitorais como antigamente. Desde logo, porque ao amadorismo puro de então se contrapõe hoje o profissionalismo das agências de comunicação. Muita coisa mudou na forma de vender o peixe político. Realizavam-se comícios até nos mais recônditos e isolados lugarejos de Portugal, com a presença física de candidatos cujas orações aqueciam o coração dos crentes e convertidos. Era o tempo da têvê a preto e branco, ou nem isso, que a electricidade ainda levaria muito tempo a chegar a toda a parte.
Constrói-se bastante no Algarve, mas todos sabemos que faltam muitos milhares de habitações acessíveis para a população local e para os trabalhadores que para cá vêm trabalhar
A procissão das caravanas eleitorais pelo mapa de feiras e mercados tornou-se um adereço tão inútil como indispensável para distribuir prendinhas pelo povo em mostra de generosidade interesseira, lapiseiras, balões, bolas, aventais de plástico, bonequinhos, camisolas, guarda-chuvas e tudo o que a imaginação se lembrasse. Era uma fartazana! Hoje, o mundo virtual da internet substituiu isso quase tudo. Fazem-se umas arruadas falsas, com teatrinhos de apoiantes ou de provocadores à volta do candidato principal, tudo organizado para a colheita diária de peças de reportagem por parte dos jornalistas. Perdeu-se a noção de fronteira entre o período de defeso, e a época da caça (ao voto).
O eleitoralismo ocupou por inteiro o terreno e o calendário. Vive-se em estado de permanente campanha eleitoral. Começa no minuto seguinte ao anúncio dos resultados e acaba no dia da eleição seguinte. A convulsão social é estimulada não só pelo falhanço dos políticos e das políticas, mas também pelos órgãos informativos que dela se alimentam. O espaço dedicado ao lado positivo da sociedade é mínimo. O ruído, a rua e o protesto estão capturados por uma minoria. Noutros tempos, mobilizavam-se exércitos de voluntários, militantes e simpatizantes das forças partidárias, que forravam literalmente de cartazes todas as fachadas das casas do país inteiro, decoravam de cima a baixo os postes da é-dê-pê com pendões de ráfia pintalgada de slogans políticos e apelos ao voto.
Agora, equipas especializadas, remuneradas contratualmente, montam cartazes gigantescos (outdoors) nos lugares nobres das urbes, nos centros e nas entradas, em concorrência directa com o marketing dos supermercados e das agências imobiliárias. Em certa medida, foi um progresso comparativamente ao passado. Mas, no momento em que estas linhas estão a ser redigidas, a parafernália de cartazes gigantes ainda não foi levantada, nem substituída, um mês depois do acto eleitoral. Esta ocupação gratuita e permanente de zonas privilegiadas é um abuso paisagístico.
As mensagens ficam desactualizadas, obsoletas na data das mudanças para quem venceu, promessas inertes de quem perdeu, falam de um país inteiro que está mais partido que nunca, prometem limpar Portugal, esquecendo-se os comensais políticos de começar por limpar os seus próprios restos eleitorais.
O ALGARVE E A PASTA DE TRANSIÇÃO
Como é da praxe e de obrigação, antes da fotografia à saída da porta do Palácio de S. Bento, António Costa entregou a chamada Pasta de Transição, na qual se elencam as obras e os projectos em curso que deixou de herança para o governo que se seguiu. Ao longo de 50 páginas, mais uma vez se constata que Lisboa, Porto e arrabaldes respectivos abocanham como sempre o grosso das empreitadas com importância suficiente para serem referenciadas pelo nome, acima das obrinhas incluídas nos eteceteras & eteceteras trabalhos anónimos limitada. Do Algarve, descobrem-se cinco curtos parágrafos.
Sobre o “Novo Hospital Central do Algarve / Centro Regional de Oncologia do Algarve” fica-se a saber que foi aprovado há dois meses “o dimensionamento e perfil assistencial proposto pela Equipa de Projeto”. Ou seja, passadas duas décadas de promessas adiadas e inaugurações de primeiras pedras, ainda se está na fase do PAPEL! Constrói-se bastante no Algarve, mas todos sabemos que faltam muitos milhares de habitações acessíveis para a população local e para os trabalhadores que para cá vêm trabalhar.
O que estará em curso que mereça referência especial na Pasta? “84 habitações no Conjunto Habitacional Vale de Lagar, em Portimão”. Em que estado? “Outros projetos a iniciar”. Mais uma situação no PAPEL! Segue-se a tão necessária como prometida há tantos anos “Variante de Olhão à EN 125”. Situação: contrato de empreitada assinado, ou seja, ainda no PAPEL! Sobre a dessalinizadora de Albufeira, projecto recente e sob fogo de ambientalistas, está onde seria expectável que estivesse, na fase do Estudo de Impacto Ambiental já divulgado, mas para todos os efeitos também está em fase PAPEL.
O que não está no papel, mas cujo ritmo de execução quase releva ao tempo do papiro, é a electrificação da ferrovia regional de Lagos a Vila Real de Santo António. Obra de Santa Desgrácia, prevê-se que dê o último suspiro no ano corrente. A pobreza do balanço também explica os porquês dos desconcertantes resultados eleitorais da sondagem real ao descontentamento dos algarvios, ocorrida a 10 de Março passado.
Dure o tempo que durar, o actual governo tem a responsabilidade de virar a página e fazer no Algarve “o que ainda não foi feito”. Abrunhosa dixit.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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