Esta pergunta deu cabo da cabeça aos filósofos durante séculos e continua a dar dores de cabeça aos investigadores, num amplo espectro, nos dias de hoje. Vejamos alguns destes casos:
O filósofo francês Renée Descartes (1596-1650) dando-se conta de que os órgãos dos sentidos por vezes nos enganam, resolveu pôr tudo em causa, começou a duvidar sistematicamente, chamando a este procedimento dúvida metódica. Acabou por chegar à conclusão de que podia duvidar de tudo menos do facto de que duvidava, e se duvidava pensava, e se pensava existia… O famoso cogito ergo sum ― penso logo existo. Ficou assim estabelecida a primeira verdade apodíctica ― aquela que não é susceptível de nenhum grau de dúvida por ser tão clara e distinta. A partir daqui Descartes estabelecerá estas duas características ― clareza e distinção ― como critérios de verdade. O filósofo francês entendia que a realidade se subdividia em res cogitans (coisa pensante), e res extensa (coisa extensa ou matéria). Defendia o primado da primeira sobre a segunda postulando a existência de ideias inatas, quer dizer, ideias que “nascem” connosco, que não provêm da nossa vivência no mundo. Estas ideias inatas são claras e distintas, não são inventadas por nós mas produzidas pelo entendimento sem recurso à experiência. Descartes em Meditações sobre a Filosofia Primeira, obra publicada em 1641, descreve-as deste modo: “descubro em mim inúmeras ideias de certas coisas que possivelmente não existem nenhures fora de mim, mas que não podem, todavia, dizer-se que são nada. E embora, de certo modo, eu as possa pensar ou não pensar, segundo a minha vontade, não são, no entanto, inventadas por mim, mas possuem as suas naturezas verdadeiras e imutáveis.” (quinta meditação).
Em oposição, John Locke (1632-1704) filósofo e médico inglês, em Ensaio sobre o Entendimento Humano, publicado em 1690, defendia que a mente humana era como uma tábua rasa: as impressões captadas através dos órgãos dos sentidos iam imprimindo em nós algo de conhecimento. Como se fossemos feitos de argila, os objectos do mundo exterior iam deixando em nós a sua marca.
O filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753) no Tratado do Conhecimento Humano, publicado em 1710, fará uma crítica feroz a Locke. Berkeley considera que tudo existe dentro da nossa cabeça. Os objectos materiais, como as mesas e as cadeiras, são ideias que só existem na mente daquele que as capta. Os objectos não teriam uma existência material separada de uma mente que os percebesse.
Bastante influenciado por Locke o escocês David Hume (1711-1776) publicou em 1748 a obra Investigação sobre o entendimento humano. Neste livro põe em causa a Lei da causalidade, considerando que pelo facto de dois acontecimentos se seguirem um ao outro isso não implicaria que um fosse necessariamente a causa do outro. Imputou-lhes apenas uma sequência temporal a que nos habituámos.
Os filósofos que consideraram que todo o nosso conhecimento é empírico ― provém da experiência ― foram denominados empiristas. Aos que atribuíram o primado do conhecimento à razão chamou-se racionalistas. O conflito entre empiristas e racionalistas perdurou até que, por fim, o homem por quem se podia acertar o relógio conseguiu reconciliar ambas as teorias. Tratou-se de Immanuel Kant (1724-1804) o filósofo alemão que nunca viajou, e de quem se conta que saía pontualmente de casa às três e meia da tarde para o seu passeio diário.
Tal como o astrónomo Copérnico (1473-1543) propôs que se abandonasse a teoria geocêntrica de acordo com a qual os corpos celestes e o próprio Sol giravam em redor da Terra, Kant na sua obra Crítica da Razão Pura publicada em 1781 vai propor que se realize uma revolução copernicana em termos do estudo do conhecimento humano: “Se a intuição tiver que se guiar pela natureza dos objectos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objecto (como objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade.” Em seguida estabeleceu os limites do conhecimento humano: apenas podemos conhecer aquilo que captamos através das nossas próprias condicionantes, portanto, nunca podemos saber o que as coisas são em si mesmas independentemente do nosso modo de as captar. Kant chamou transcendental a este estudo das condições de possibilidade do conhecimento por parte do sujeito. Ao que quer que sejam as coisas em si mesmas, independentemente da nossa forma de as captar, Kant chamou númeno. O númeno é, obviamente, incognoscível. A todo o conhecimento que se pode obter sem recurso à experiência, Kant chamou conhecimento a priori; a todo o conhecimento que se obtém a partir da experiência Kant chamou a posteriori.
Enunciou que o nosso conhecimento é um misto entre aquilo que temos dentro da cabeça, e que condiciona o modo como captamos as coisas, ― a forma que é a priori, portanto, independente da experiência ― sendo a forma algo inato e inerente ao sujeito que conhece, Kant coincide aqui com os racionalistas; e aquilo que captamos, os dados que introduzimos, a que Kant chamou matéria ― algo que vem de fora, que provém da experiência sendo, portanto, a posteriori ― aqui Kant coincide com os empiristas.
Kant distinguiu três tipos de juízos de conhecimento possíveis:
1. Juízos analíticos: o predicado está contido no sujeito. Por exemplo: todos os corpos são extensos. Estes juízos não acrescentam conhecimento. Os juízos analíticos são a priori, i.e., são universais e necessários e não dependem da experiência para a sua formulação.
2. Juízos sintéticos: o predicado não está contido no sujeito. Ex: os nativos do país x medem mais de 1.90m. Os juízos sintéticos acrescentam conhecimento mas são, normalmente, dependentes da experiência, i.e., só podem ser formulados a posteriori. São juízos contingentes.
3. Juízos sintéticos a priori ― serão eles possíveis? Juízos em que o predicado não está contido no sujeito, portanto, ampliam o nosso conhecimento. Porém são a priori, i.e., independentes da experiência, universais e necessários. Kant dirá que sim. Ex: a linha recta é a distância mais curta entre dois pontos.
A existência de juízos sintéticos a priori foi o grande desafio kantiano. Para se perceber melhor como se processa a formulação de juízos há que atender ao processo de conhecimento exposto na Crítica da Razão Pura que aqui tentarei sintetizar:
1. Sensibilidade: este é o primeiro estágio de conhecimento e tem como formas a priori as intuições puras: Espaço e Tempo. Como matéria possui as intuições sensíveis que “entram” através dos órgãos dos sentidos. É a este misto ― dados que entram pelos sentidos e que são organizados no Espaço e no Tempo ― que se vai chamar fenómeno.
2. Entendimento: neste segundo estádio o fenómeno produzido pela sensibilidade vai constituir a sua matéria. Por sua vez, o entendimento tem como como formas a priori as categorias ou conceitos puros que podem ser de quatro tipos: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Cada uma destas categorias subdivide-se em três tipos. Gostaria de chamar aqui a atenção para a lei de causa e efeito que, em Kant, aparece subsumida no conceito puro da relação. Assim, a lei da causalidade é entendida por Kant como sendo inata e não como proveniente do hábito como pretendia David Hume.
3. Razão: o fenómeno proveniente da sensibilidade e organizado pelas categorias do entendimento vai produzir os juízos ou conceitos empíricos que, por sua vez, serão a matéria deste terceiro e último estágio de conhecimento. A razão tem como formas a priori as ideias transcendentais que ao organizarem os conceitos provenientes do entendimento vão produzir os raciocínios.
É da natureza da razão procurar leis cada vez mais gerais na tentativa de explicar um número cada vez maior de fenómenos. Muito atento, Kant estabelece então e pela primeira vez os seus limites: enquanto esta procura se mantém dentro do recinto da experiência tal tendência é eficaz e amplia conhecimento. Ultrapassada esta fronteira a razão entra em paralogismos e antinomias.
Porém, a razão tende para o incondicionado, pensa ideias das quais não podemos alcançar conhecimento por se encontrarem para além dos limites atrás estabelecidos. Deus, alma e mundo são, para Kant, as principais ideias da razão. Vejamos:
– Temos a expectativa de que o mundo existe como um todo, embora dele só experimentemos partes;
– A alma não pode ser conhecida ― não existe o fenómeno alma ― mas as nossas aflições e angústias, bem como o nosso livre arbítrio parecem apontar para a sua existência;
– Deus tão pouco se constitui em objecto científico, mas a sua ideia norteia acções e condutas humanas;
Apesar de não nos proporcionarem conhecimento estas ideias têm, segundo Kant, um papel importante: elas possuem um uso regulador, apontam a meta rumo à qual caminhar. Talvez a nossa mente precise desse horizonte de sentido que nos dá alento para prosseguir.
Café Filosófico | 20 Abril 2023 | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel Tavira
Contribuição: 5€ | Inclui: água aromatizada / cálice de vinho
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A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa